Em uma sociedade cercada de julgamentos, Ana Carol ignora o que é aceito e se expõe, sem medo, a sua verdadeira faceta. Ao descobrir a arte, ainda na primeira infância, a multiartista se reconecta com a dança e a interpretação e entrega o melhor de si em "Alma Nua", seu primeiro álbum que foi lançado esse mês.
Sua nova obra é uma composição do que Ana já fez nesse mundo: do ballet clássico quando criança, à faculdade de psicologia em Porto Alegre e aos musicais que realizou no Rio de Janeiro. Quando pergunto se existe um motivo da demora do seu álbum, ela responde, me fazendo relembrar o ditado "quem tem pressa, come cru": "Foi proposital não ter pressa, eu queria fazer uma coisa que fosse um reflexo daquilo que eu sou, daquilo que eu quero dizer, de como eu queria me apresentar. Eu não tinha um compromisso de agradar alguém, apenas a minha necessidade de realizar esse sonho".
Composto por duas faixas autorais e regravações de artistas que a inspiraram, o novo projeto é um grito e respiro para os dias sombrios que continuamos passando. Ao dar uma nova versão de "Bicho Burro", da banda Dônica, por exemplo, a cantora traduz o grito de todos os brasileiros com a crise política/sanitária que o país está passando. O mesmo grito está em "O Tempo Não Para", de Cazuza.
Ana, eu queria começar a falar com você sobre o seu início. Você é uma artista multimídia: atriz, cantora, compositora, bailarina… Eu queria saber como a arte entrou em sua vida.
Desde que me conheço por gente, a arte tá ali em minha vida. Eu sempre tive impulso para essa direção artística - desde muito pequenininha. Eu era uma criança que vivia fazendo performance em casa, desde os dois anos. Eu amava isso e desde pequena eu demonstrava isso, tem um monte de fotos e vídeos também da minha infância… E é nítido como muito pequenininha eu tinha esse direcionamento é muito presente. Eu gostava de cantar, dançar, atuar. Minhas brincadeiras giravam em torno disso e depois vieram os teatrinhos com os primos - e a gente vivia fazendo teatro em todos os encontros de família.
Jura?
Então, assim, a arte entrou na minha vida desde que eu percebi que existia essa forma de expressão: que era possível me expressar através de outros caminhos e não só aqueles usuais do dia a dia das pessoas. Eu, muito rapidamente, me identifiquei com essas formas de expressão - prefiro me expressar por esses caminhos do que por outros. Eu prefiro cantar, escrever, prefiro fazer uma peça de teatro para dizer alguma coisa do que falar de outras formas. Então, eu percebo que a arte pra mim, na minha vida, desde que eu me entendo por gente.
Claro, também tive um incentivo. Meu pai sempre teve uma coleção de discos imensa, então eu tive muito contato com todo o tipo de música que você imagina, desde muito pequena. Meu tio, um dos meus tios, por parte de mãe, é um grande apaixonado por música e também tem uma coleção gigante de discos. Então, na casa dele, onde eu frequentava muito, eu também tive muito contato com música do mundo inteiro, estilos musicais diversos - muito jazz, MPB, muito samba… Foram as minhas principais influências nesse começo de vida. Logo em seguida, eu comecei a dançar, ainda pequenininha. Com oito anos, eu já fazia ballet clássico e já me destaquei e já entrei para um grupo que competia, fui para festivais, ganhei prêmio e depois, comecei a me interessar pelo teatro; saí da dança, já mais pré-adolescente… Um pouquinho antes disso, ali nos 11 ou 12 anos, eu comecei a entender que eu tinha como fazer coisas… Que eu tinha uma consciência da minha voz, que eu podia fazer coisas com a minha voz - não só cantarolando, que meu cantar não era só um cantarolar, sem compromisso. Então, ali com 11 ou 12 anos, eu comecei a ter prazer em explorar a voz, de outra maneira, mais consciente mesmo, percebendo que eu podia mandar ela para cá, para lá, fazer aquilo… Então, ali eu comecei a querer explorar mais o universo da música e nessa época eu também já escrevia poesias… Enfim, tudo aconteceu meio junto, sabe. Mas eu só fui partir para viver disso aos 22 anos, depois que eu terminei a minha faculdade de psicologia lá em Porto Alegre. Eu percebi que eu precisava dar essa virada na minha vida…. A arte, pra mim, não ia bastar, ficar numa coisa meio paralela, eu precisava viver daquilo. Aí quando eu terminei a minha faculdade eu pensei "se não for agora, talvez eu nunca mais faça essa tentativa". Aí eu saí de Porto Alegre e fui para o Rio de Janeiro e aí sim tudo começou a mudar.
Eu quero saber se suas vivências como bailarina e atriz também te ajudaram a se descobrir e também "aceitar" você como cantora?
Com certeza! O fato de ter começado a dançar muito cedo e ter tido essa vivência meio que profissional na dança, me fez enxergar sim a possibilidade de trabalhar no universo artístico, mesmo com esse cenário social que me dizia que a arte tinha que ser um hobbie, digamos assim, eu consegui dentro da minha experiência com a dança que aquilo era um trabalho sim. Acho que aquela sementinha de que no futuro eu poderia ser uma artista profissional foi plantada com a dança, sem dúvida. Eu tinha essa disciplina… Eu tinha uma relação profissional com a dança e ali eu entendi uma rotina trabalhar como artista e percebi quanto o trabalho do artista é muito mais esse trabalho árduo de todo dia, muito mais do que as pessoas imaginam, do que o resultado que as pessoas veem. O artista, mais do que as outras áreas, talvez, as pessoas tem essa relação de que o trabalho do artista é aquilo que estão vendo e não, o trabalho do artista é tudo aquilo que acontece antes do que a pessoa consegue ver.
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Ana Carol renasceu após tornar-se mãe. As prioridades mudaram, assim como o seu olhar. O mundo que parecia caótico, sem jeito, agora tem esperanças: Francisco, o mais velho, e o pequeno Antonio. Inclusive, os pequenos participaram da gravação do álbum, deixando tudo mais lindo, do jeito que Ana sempre sonhou: "Estávamos todos juntos ali, eu grávida de Antonio durante as gravações e Francisco, meu filho mais velho, no chocalho de "Janela", backing vocal de "Mas Que Nada"", lembra. A alma da artista está nua: conhecemos seus amores e como ela se derrete por eles. Seu companheiro, André Moraes, cineasta, músico, compositor e responsável pela trilha sonora do filme "Lisbela e o Prisioneiro" (Guel Arraes, 2003), também esteve presente no álbum e foi encarregado por criar a pluralidade dos arranjos que embalam as faixas do disco.
Produzido pelo gênio Moogie Canazio, nome por trás de lançamentos de Maria Bethânia, Caetano Veloso e João Gilberto, "Alma Nua" foi gravado em Los Angeles (EUA) e mistura gêneros musicais, conquistando qualquer um que ouve. No entanto, Moogie vai além da produção: foi ele que deu força para Ana Carol se conhecer como compositora.
"Alma Nua" tem duas faixas autorais suas e o restante é composto por regravações de outras obras. Esse processo rolou naturalmente? Qual foi o critério para escolher as canções?
Esse disco nasce de um processo meu de empoderamento muito forte, embora essa palavra esteja sendo usada por todo mundo… Mas é real e não tem outra palavra para usar. Foi um processo de empoderamento que a maternidade me trouxe e o disco é um fruto desse processo. O fato de um projeto nascer é fruto de um processo de empoderamento. O disco que você ouve hoje é também fruto de um processo de empoderamento dentro do próprio projeto, porque era o meu primeiro disco. Depois de muitos anos distante daquele meu projeto inicial, onde eu mesma já não sabia mais se eu era capaz de fazer o disco. Daquele momento que a gente decide fazer o projeto, eu também passei por um processo de empoderamento de reencontrar essa Ana Carol lá de trás, de reencontrar essa pessoa que sempre esteve conectada com a sua música, desde muito pequenininha, e que podia realizar isso, que podia sim compor músicas e era uma coisa que eu achava que eu não pudesse fazer - embora eu tenha muitos poemas que hoje, a gente percebe que dá para musicar, inclusive, e é um trabalho que a gente tá fazendo agora.
Eu achava que eu não podia compor se eu não tocasse nenhum instrumento para caramba. No processo do disco, a primeira coisa que destravou, que foi o pontapé inicial, de fazer o disco acontecer, foi destravar a compositora. O Moogie [produtor do álbum] disse que eu tinha condições de compor, que o que eu escrevia tinha muita musicalidade. Quando ele me deixou tão confiante em uma conversa que tivemos em Los Angeles, eu fiquei pensando…
Quando eu pisei no Brasil, de volta, finalzinho de 2017, num dos primeiros dias que a gente estava em casa, me veio "Alma Nua" - letra e música de uma vez só, que eu compus para o meu filho mais velho, inspirada na imagem do último dia que amamentei ele e também em todo o processo que amamentar despertou em mim. Veio como uma enxurrada! Eu larguei tudo que eu tava fazendo - eu tava arrumando uma bagunça dentro da minha casa e me veio a música, parei tudo, peguei um pedaço de papel, uma caneta, fui para o chão que era o único lugar que tinha espaço (sabe aquela revolução que a gente faz no quarto? Tava um caos, não tinha lugar para sentar) [risos] e fui escrever a música. Quando eu terminei de escrever a letra, eu já gravei no meu celular, já cantarolei, e já fui correndo para a sala para mostrar para o André [risos]. Ele adorou e eu já mandei para o Moogie e ele também adorou e aí a gente começou a refletir se a gente fazia um disco totalmente autoral ou se fazia um misto das coisas… E eu senti uma necessidade muito grande de homenagear alguns artistas que fizeram parte da minha caminhada, que são influências fortes pra mim, que sem eles eu não estaria fazendo esse disco. Do mesmo jeito que eu tenho vontade de fazer um disco autoral - e pretendo fazer, talvez o segundo -, eu queria muito que o público ouvisse ou quando eu ouvisse esse projeto pronto, eu visse ali essa jornada toda até o disco.
O título do álbum também me surpreende porque dá a entender que você se desinibiu de tudo para mostrar quem você é. Eu queria saber como foi esse processo de se desnudar, porque não é fácil, se foi doloroso, se foi fácil...
"Alma Nua", a música, surgiu com esse desnudar-se que a maternidade propõe e é inevitável. Não dá para fingir ou fugir de nada na maternidade, porque somos mães 24h por dia e seremos assim até o resto de nossas vidas. Eu entendi essa nudez interna que existia naquela vivência e que veio para dentro da música... Quando eu fiz a música, eu entendi que esse disco tinha que ser isso; que esse disco tinha que ser eu de alma nua. O álbum veio desse processo: de me apropriar de mim mesma e não ter vergonha e nem medo de me apresentar para o mundo da maneira que eu sou. Quando você diz "tirar essas fraquezas para dizer isso", acho que é justamente o oposto: é integrar as minhas fraquezas para que eu possa me mostrar com elas. As fraquezas, dificuldades, os desafios, todos estão aqui. Eu sigo sendo uma mulher deixa de complexidades. Esse processo do disco foi justamente entender que é tudo isso que faz com que eu seja uma pessoa única nesse mundo, como todos nós somos. Se eu não me apresentasse justamente assim para as pessoas, eu nunca fosse, talvez, fazer aquilo que eu sempre tive vontade de fazer. Acho que foi muito mais um processo de me despir da preocupação com o que o outro vai pensar, de me despir do julgamento, tanto do outro quanto meu próprio, do que me desfazer de qualquer dificuldade que tenho. As dificuldades seguem comigo e eu acho que são elas que tornam esse trabalho único, meu, com a minha cara e do jeito que eu acredito que ele tinha que ser.
Não é fácil esse processo, mas é bonito e é gostoso. A gente vai se sentido cada vez mais fortalecido. Entendi que tudo que aquilo que eu tava aprendendo como mãe, de bancar as minhas decisões, mesmo que fossem pouco lógica para outras pessoas... Esses desconfortos são bonitos, vai gerando muito crescimento. Eu acho que aprendi a me expressar dentro dos desconfortos, me apropriar do que acontece dentro dos desconfortos e usar isso ao meu favor.
Agora, falando das melodias do seu álbum. Eu adorei a sua versão para a música da Dônica. O que me surpreendeu no disco foi a alteração da melodia: leve e depois surge a guitarra e a bateria. Isso foi pensado ou foi durante o processo que surgiu?
Foi totalmente pensado. Eu queria muito, era uma dos meus briefings, vamos dizer assim, [risos] que tivesse essa multiplicidade, essa diversidade, esses contrates dos discos. Tudo dentro do disco, absolutamente tudo, é uma escolha e uma forma de dizer um pouco de tudo que encontrei nesse processo que vim te relatando. E nesse processo, eu não sou como mulher uma só, eu sou muitas! Eu sou a Ana Carol mãe, a Ana Carol atriz, a Ana Carol escritora, a Ana Carol filha, a Ana Carol esposa - e todas essas meninas estão dentro de mim, estão aqui. E quando eu digo "eu" eu me coloco também nesse coletivo de mulheres, eu sinto que todas as mulheres tem isso em algum nível e eu queria que esse disco trouxesse essa possibilidade das mulheres serem tudo que elas podem e querem ser. A gente não precisa ficar dentro de uma caixinha, ser aquilo que esperam da gente. Uma das maiores lições que a maternidade me trouxe foi justamente essa: durante muito tempo em minha vida e eu acho que em muitas pessoas, a gente passa reprimindo alguns sentimentos. A maternidade traz tudo isso para fora e faz a gente integrar os sentimentos, porque é impossível criar uma criança sem entrar em contato com tudo isso. Criar os meus filhos me fez entender o quanto sentir é natural. Nesse disco, eu queria que trouxesse essa percepção de que os sentimentos estão aí para serem sentidos e eles estão todos dentro da gente.
No começo do papo, você falou que escreve muitas poesias e agora estão sendo musicadas. Queria saber como tá sendo o seu processo de escrita, ele foi alterado de alguma forma com tudo que está acontecendo?
Foi bastante alterado na notícia, mas não foi sentido de produção. Eu sou uma pessoa que tá fazendo uma coisa e tá tendo outras ideias. Eu não parei de criar e criei mais do que imaginava nesse período caótico. Caótico de ruim mesmo, porque é um cansaço mental, físico e espiritual e eu achei que algum momento poderia dar um créc, mas não... Eu consegui criar, de uma maneira diferente, teve que ter muita resiliência, muito acolhimento de si para ser menos exigente. Eu tenho muita dificuldade de não exigir tanto de mim e às vezes isso me paralisa, mas o isolamento me obrigou a não ter tanto esse controle e que tá tudo bem fazer aquilo que é possível. Um poema que passaria por quatro ou cinco tratamentos antes de ser publicado, não passou, e eu não posso ficar esperando aparecer outro momento para mudar. Eu quero falar aquilo naquele momento.
Você finalizou um álbum no meio de uma pandemia. Você já pensa em como colocá-lo no palco, em um futuro pós-vacina?
A gente tem pensado sobre isso, mas não temos um formato totalmente fechado, até porque a gente, possivelmente, vai ter que adaptar qualquer desejo nosso. Tinha algumas coisas que a gente já tinha imaginado para show e outras coisas, mas agora nós estamos em um processo de como colocar isso no mundo digital. Não quero que seja algo só para fazer, sem nada de diferente e que esteja falando com o disco - esse é o nosso desafio de encontrar uma experiência para o público que seja interessante e que tenha uma quebra de paradigmas no meio desse mundo digital. Agora, eu nem quero muito pensar nesse presencial porque é mais fonte de frustração [risos].
"Alma Nua" está disponível em todas as plataformas musicais e pronto para dialogar, desconstruir muros, apresentar um novo horizonte ao público.
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