Em um vídeo, o professor Franklin Leopoldo e Silva diz que o tempo é "a coisa mais importante que existe", porém, não refletimos sobre, afinal, temos pressa para viver. No entanto, mais tarde, questionamos a passagem do tempo a partir de memórias, reflexões e imagens, possibilitando (re)escrever histórias. Desde 2012, com o lançamento do primeiro disco, Em Busca do Tempo Perdido, Atalhos dialoga com o tempo a partir do existencialismo, lembrando que a existência é um processo.
Com mais de uma década de trajetória, a Atalhos, encabeçada por Gabriel Soares e Conrado Passarelli, segue a caminhada que começou em Birigui, interior de São Paulo. Com 4 álbuns lançados e passagens pelo mundo, a banda compartilha sua sonoridade com letras literárias e autobiográficas, fazendo com que o imaginário se confunda com o fantástico (como as histórias de Julio Cortázar), aproximando-se do ouvinte.
O tempo, esse espaço que não possui uma exata definição, foi essencial para que o grupo revisitasse o passado para trabalhar em novas canções. Enquanto "Más Lejos" retrata as últimas viagens e turnês pela América do Sul, já "Ondas de Calor", recém-lançada, resgata as raízes roqueiras da banda construindo uma paisagem sonora com flertes sedutores que vão desde o shoegaze e o noisy ao característico dream pop da banda.
"Onde estamos nós? / O tempo… ele é sempre cruel, não é?", canta Gabriel na nova música. É possível que não saibamos onde estamos e nem para onde vamos, mas "Quem desafia a distância entre dois pontos / Não morre nunca".
Leia também:
Quando você olha para trás, imaginava que Atalhos estaria no lugar que ocupa hoje?
Eu estou agora em Nova Iorque, a gente vai tocar aqui semana que vem. Apesar de ser um festival com várias bandas, existe um público nosso aqui, esperando ou querendo ouvir, mas querendo ou não, é uma vitória para a banda que nasceu no interior de São Paulo, em Birigui. A gente realmente não imaginava… Eu nunca imaginava estar vindo com a minha própria banda tocar em Nova Iorque, então, é uma vitória. Mas ao mesmo tempo também tem várias frustrações no meio do caminho: gostaríamos de estar em outro patamar depois de tantos anos de carreira, mas é uma mistura de sensações.
Vocês já rodaram o mundo inteiro, mas vocês nunca esqueceram as raízes, né?
A gente, por exemplo, nos últimos anos, tentamos expandir um pouco o som da Atalhos, fazer com que ele pudesse chegar em outros países, principalmente países latino-americanos, até por isso que começamos a fazer colaborações com artistas latinos. A gente lançou também uma música 100% escrita e cantada em espanhol [Más Lejos], temos essa coisa de querer levar a música da Atalhos para outros lugares, mas ao mesmo tempo a gente não esquece, a gente não quer esquecer que a gente é uma banda brasileira, né? E a gente gosta muito de tocar no Brasil, gostaríamos de tocar mais, na verdade, mas algumas oportunidades começaram a pintar mais fora do que no Brasil, a gente não pode deixar de viajar e de pegar essas oportunidades, né?

A narrativa da Atalhos é inspirada na literatura. O que ela representa?
O lance da literatura sempre foi algo muito natural para mim e para o Conrado. Quando a gente começou a banda, a gente gostava muito de ler, começamos a ler mais ou menos juntos, na mesma época, quando a gente tinha 15, 16 anos, depois, a partir dos 20 anos, a gente se mudou para São Paulo, a gente morou junto em São Paulo, e foi um momento que a gente começou a ler muito mesmo e a gente se inspirava, a gente lia junto às coisas, sabe? Ele me mandava livros, eu mandava para ele… E os principais livros que a gente lia naquela época eram livros, assim, mais existencialistas, né? Lia romance do Sartre, lia umas coisas de filosofia da Simone, lia coisas do Camus, lia um monte de coisas do existencialismo francês do século passado. A gente começou a se inspirar muito pelas coisas que a gente tava lendo… Tem até uma música do Conrado, por exemplo, que a gente nunca lançou em nenhum disco, chama "Noites Brancas", que é uma música que o Conrado fez a letra e tal, aí eu coloquei esse título, porque é um livro do Dostoiévski, né? É um livro pequenininho do Dostoiévski. Aí eu falei para ele: "olha, eu vou contribuir dando um título aqui para essa música, porque eu achei que a letra tem a ver com esse livro que eu li." Aí, a partir daí, começou essa brincadeira da gente de vez em quando inserir títulos de livros que a gente lia, ou nomes de personagens.
Por exemplo, a primeira faixa que abre o nosso primeiro disco, de 2012, Em Busca do Tempo Perdido, é uma homenagem ao livro do Proust também. A primeira faixa chama "Mathieu 4 Ever" e o Mathieu é um personagem do livro Sartre, que abre a trilogia A Idade e a Razão. Então, sempre foi brincadeira, assim, que a gente gostou de fazer, de fazer homenagens, colocar o nome do personagem, o nome de... Mas também nos últimos tempos, especialmente no último disco que vamos lançar, a gente tem tido bastante cuidado para não criar essa imagem da banda, porque sempre falaram muito [sobre] a banda e a literatura, para não se criar uma coisa, assim, meio superficial, ou que parecesse meio blasé, sabe? Ou que o som da Atalhos fosse alguma... Para as pessoas conseguirem se identificar com o som, teriam que ler os livros, mas que não tem nada a ver com isso. Então, a gente sempre quis fazer agora letras mais diretas, mais... Até simples, assim, sabe? Mas sem deixar essa coisa da literatura de lado, mas que não seja uma coisa meio blasé, sabe? Então, é uma coisa que acho que a gente vai sempre colocar um pouco assim nas músicas. Não automaticamente em todas. Por exemplo, essa música que nós estamos lançando agora, "Ondas de Calor", não tem nenhuma referência direta, nem nada, nem um livro e tal, mas depois tem outras músicas no disco que vão sair que tem, sabe? Que tem coisas ali ligadas à literatura. Mas é uma coisa de paixão nossa mesmo. A gente gosta e a gente quer compartilhar esse entusiasmo das leituras que a gente faz.
Proust acreditava que as pessoas tinham potencial para serem artistas, visto que é possível transformar as experiências do dia a dia em arte. Você também pensa assim? Aliás, a Atalhos está fazendo isso conscientemente ou inconscientemente?
Eu não sabia que ele tinha falado isso. Ou talvez ele tenha dito alguma coisa mas não lembrava. Mas eu concordo, sim. Eu acho que esse olhar artístico também, que ele deve estar falando, é mais ou menos sobre isso. Você pode pegar qualquer cena do cotidiano, qualquer coisa, você pode transformá-la em arte. A literatura possibilita isso e a música também. Eu acho que a música, em determinadas formas, você consegue falar com mais limitação ali, dependendo de cada coisa. A literatura é mais… O David Foster Wallace, acho que chegava a falar sobre isso, que a literatura, você poderia realmente escrever. Ele era capaz, por exemplo, de escrever cem páginas sobre as coisas mais banais possíveis, mais toscas, mais nada a ver, que jamais alguém iria pensar que poderiam ser colocadas num livro ou em formato de literatura, mas ele conseguia. Então eu acho que a gente também se inspira assim por coisas de olhares do cotidiano, coisas simples também, que a gente tenta colocar e transformar isso em arte. No caso da Atalhos, especialmente em viagens, distâncias, porque eu gosto muito de dirigir tipo caminhoneirão mesmo, pegar e fazer viagens longas e longas, e são nesses momentos que eu também me inspiro pra criar as canções. Vou meio que pensando elas, depois quando eu vou sentar e começar a tocar, fazer um negócio, mesmo que inconscientemente tenha essas cenas gravadas do que passou de horas e horas dirigindo, entendeu? E eu acho que também tem a ver com isso que você falou, que são momentos ali, às vezes uma viagem inteirinha pode ser uma coisa meio que tediosa, mas às vezes essa simplicidade, coisas que vão passando pelo retrovisor, pela janela, de alguma forma ficam guardadas na cabeça e depois você consegue iluminar elas de outra forma, né? Meio que transformando em arte numa música, num refrão ou numa melodia, acho que é meio por aí.
É mais fácil escrever uma música e cantá-la ou apenas escrever? Existe uma diferença também pra você?
Eu acho que é muito difícil, na verdade. É um processo meio estressante. Eu escrevo também literatura, eu tenho dois livros publicados, só que agora eu tô escrevendo um maior e tal, porque eu tô me dedicando a mais tempo, que é meio autobiográfico também e tal, e que mistura um pouco também ainda a minha vida com a música, a minha filosofia, as coisas que eu gosto e tal. Eu acho muito difícil também, é muito difícil você sentar e escrever, porque às vezes tem que reescrever e tal, mas eu acho que, fazendo uma comparação, na literatura é um pouco mais fácil, tem mais espaço ali pra… Você consegue meio que jogar num rolo compressor ali, às vezes vai meio que no automático. E na hora de fazer a música, tem toda a métrica ali, ela tem que encaixar na melodia, porque às vezes a primeira coisa assim, por exemplo, nesse último disco agora que nós vamos lançar, todas as faixas eu compus no ano passado, no comecinho mais ou menos nessa época do ano, só que no ano passado, né? E aí foi fazendo a pré-produção em casa e tal, mas é sempre mais a melodia primeiro, faz a música e depois é o que eu vim com a letra, né? Mas é muito mais difícil, é estressante, às vezes você tem que passar dias e dias pra tentar encontrar uma três, quatro palavras, ou às vezes uma palavra que se encaixa ali na métrica da música, entendeu? Que faça sentido ali, então eu acho mais difícil fazer a letra da música, na verdade, do que escrever a literatura.
Ainda falando sobre Em Busca do Tempo Perdido, a música, que leva o mesmo nome do título do álbum, evoca uma viagem, né? Uma viagem do tempo. Inclusive o tempo também está muito presente nesse disco. Em um determinado momento, você fala sobre caminho e aí eu te pergunto: é fácil escolher um caminho?
[risos] Então, isso é legal porque… Não, fácil não, nunca é, mas a gente não pode escapar dessa condição, né? Aí a gente mistura um pouco… A gente tava falando antes do existencialismo que a gente lia na época desse primeiro disco, e ao mesmo tempo eu estava lendo, foi um ano que eu passei lendo Em Busca do Tempo Perdido, que era um livro… Eu cheguei nele, tipo, sabia que muita gente falava e que quase ninguém tinha lido, que era gigante, não sei o quê, e eu falei: "eu vou tomar o desafio de ler inteiro." Mas ao mesmo tempo, a gente estava na naquela coisa de ler literatura existencialista, né? Então, por exemplo, essa música, "Em Busca do Tempo Perdido", que fala também do tempo e tudo mais, tem essa parte que você tem que escolher os caminhos. Aí, nessa hora, não estava falando de Proust, estava falando muito mais de Sartre, mais do Camus, sobre responsabilidade existencial que você não pode escapar dessas tomadas de decisão, né, que você tem que ser responsável pela sua própria existência. Então, era meio que uma mistura das coisas que a gente estava sendo influenciado na época, mas que, de certa forma, continua até hoje.
E você, junto com a Atalhos, já encontrou o caminho ou ainda está percorrendo esse caminho?
Eu acho que não tem caminho pra se encontrar, né? Porque, às vezes, as pessoas acham que tem um caminho que você tem que chegar e que vai ter o ponto final, e o ponto final até pra quem é mais existencialista, na verdade, é a morte só. Como disse o Heidegger, nós somos seres lançados para a morte desde o momento que a gente nasce. Então, acho que o final, o ponto de chegada é a morte. O mais interessante não é querer chegar - quanto mais tempo a gente demora pra chegar nessa chegada, é melhor. Então, a gente gosta de estar na travessia, entendeu? Flutuando, andando, caminhando pelos caminhos, encontrando outros, voltando. Muitas vezes, não é uma... A gente acha que é um caminho de linha reta, mas, na verdade, muitas vezes, você vai e volta pro mesmo lugar, depois da ponta e volta de novo. Então, é todo esse ir e vir e tal. Mas é isso. Eu acho que é... Acho que agora meio que perdi o fio da meada aqui que eu tava pensando… Também não é querer chegar... E aí, uma coisa que eu queria falar também é sobre caminhos, essas coisas e o nome da banda. Porque, muitas vezes, as pessoas perguntam: "vocês passaram por alguns atalhos? Conseguiram atalhos?" E atalhos, na verdade, foi tudo que a gente não conseguiu encontrar, até agora, nessa trajetória de banda, né? Porque a gente já tem 10 anos de carreira e a gente ainda tá meio que engatinhando no cenário independente, conseguindo nosso espaço ali, mas bem aos poucos… Então, a gente nunca conseguiu encontrar uma via principal, sabe? Uma autopista, assim, rápida pra gente chegar num lugar. Então, a gente meio que foi obrigado, talvez, a gostar do que eu tava te falando, de caminhos longos, mais tortuosos, às vezes nem asfaltados ali. Mas a gente nunca encontrou nenhum atalho que diminuísse o caminho pra gente chegar em tal lugar. Parece que a gente tá indo pelos caminhos mais longos, mas de uma certa forma, a gente aprendeu a gostar dessas distâncias e dos caminhos mais longos e mais difíceis também.
"Hoje em dia, você tem uma oferta muito maior de músicas sendo lançadas todos os dias. Por exemplo, durante a pandemia, especialmente, tive mais tempo pra pesquisar sons, então eu ampliei muito esse leque de música latina, principalmente, que eu queria expandir, então eu conheci muita banda nova, muita coisa legal de pessoas que estavam fazendo mais ou menos o mesmo tipo de som nosso, só que no Paraguai, no Chile, na Argentina, sabe? Então, isso foi muito legal também, ver que tem pessoas… Porque isso entusiasma, né? Ver que tem núcleos de cidades também não tão grandes, que não são das capitais também, mas fazendo essas coisas, e isso, na internet, ajuda."
Saindo de Em Busca do Tempo Perdido, vocês mudaram muito, né? Onde A Gente Morre traz Atalhos muito diferente. Como foi transitar naquele início no pop para depois virar folk com sintetizadores? Foi uma mudança que vocês necessitavam ou que vocês sentiram com o passar do tempo?
Com esse disco novo, a gente tá voltando mais pop de novo. Essa é uma briga com o pop, que tem muita coisa assim… A gente sempre se viu como roqueiro e tal, às vezes, no interior a gente tinha essa coisa meio... Simplesmente não ser o que você é, mas você falar que você é anti outras coisas. Então lá a gente era meio anti sertanejo, anti essas coisas, então a gente tinha que ser mais rock, mais... E também a gente tinha que soar como pop. Por exemplo, esse primeiro disco foi um disco… A gente se mudou pra São Paulo, foi a época que a gente não tava mais tocando lá no interior e quando a gente foi fazer faculdade aí em São Paulo, tivemos acesso aos primeiros estúdios com mais qualidade, coisas que não existiam no interior, né? A gente começou a ensaiar o primeiro disco no estúdio lá perto de casa onde a gente morava, em Moema, que a gente nem sabia, depois a gente foi descobrir que era o estúdio dos caras que a gente ficou amigo lá, que eram donos do estúdio, eram os caras da banda chamada Korzus, que é uma banda de thrash metal brasileira, muito famosa, e é thrash metal, entendeu? É coisa pesadona, né? Então quem produziu, na verdade, o nosso primeiro disco foi o [Marcello] Pompeu, que é vocalista da banda Korzus, nós somos amigos até hoje, só que não tinha nada a ver com o som que a gente escutava, porque a gente fazia mais cover quando a gente era em Birigui, era cover de coisa mais grunge, sabe? Eu escutava mais britpop também, grunge, mas a gente nunca foi de metal, então a gente também não sabia nada de produção no nosso primeiro disco… A gente sabia ensaiar, lá onde a gente ensaiava, fazia shows às vezes e tocava ao vivo, mas não sabia nada de produção, porque você tá no estúdio e é completamente outra coisa, é outra situação. Então foi uma experiência, esse primeiro disco foi meio uma salada geral, mas foi uma grande experiência pra gente. A gente começou a aprender o que é estar no estúdio e tal, e a produção tinha controle que a gente nem sabia, e acabou ficando aquela coisa de batera mais pesada, o rockão legal, assim, sabe, de forte, mas também foi 100% baseado aí na produção do pessoal do Korzus.
E aí no segundo disco, Onde A Gente Morre… Aconteceu que a gente começou a escutar esse disco [o primeiro] e a gente já não gostava mais do disco, em um ano a gente não conseguia mais ouvir o disco, achavam que estava tudo uma merda, que as músicas estavam... Bateria estava muito forte, a caixa estava sempre uma pancada, tava uma coisa muito... Não era o que a gente queria passar, só que a gente não entendia também. Como que nós vamos fazer o som que a gente acha que nos representa, né? Então, Onde A Gente Morre foi meio que um disco - como eu tava te falando antes - a gente falou: "ao invés de música pop de 3 minutos, aquela coisa com aquele formato mais radiofônico, que foi o primeiro disco que foi, nós vamos fazer músicas longas, então a gente quer música de 9 minutos, música de 7 minutos." Tanto que o primeiro single, "José Fiquei Sem Saída", tem quase oito minutos. A caixa da bateria, por exemplo, é como se uma lata, a gente inventou todo um negócio porque a gente queria um som completamente diferente. A gente experimentou bastante nesse disco. A música que abre o disco, "Sozinho Contra Todos", se você escutar a bateria - eu gravo a bateria, eu sou baterista, eu tive que vir pra frente meio que forçado, porque eu tocava bateria e cantava, mas em casas de shows pequenas ninguém me via cantando, então me falaram: "ó, tem que cantar lá na frente" - completamente torta, diferenciada, era uma forma de experimentar. Nos outros trabalhos a gente foi tentando também mudar, mas sempre dialogando com o anterior, uma forma de tentar superar eles, né, mas realmente tem muito folk no Onde A Gente Morre porque a gente quis também… A gente criava as músicas sempre no violão e a gente escutou o primeiro disco e era só guitarra elétrica, um negócio muito forte - a gente tava entendendo. Então, a gente quis colocar mais o violão em evidência nesse segundo disco influenciados por Neil Young e Wilco. Lembro que a gente assistiu o documentário do Wilco [I Am Trying to Break Your Heart] e eu lembro do Jeff Tweedy falando: "olha, eu tenho essas canções pops, mas o que a gente tá fazendo nesse disco é destruir elas." Acho que Onde A Gente Morre tem essa ideia da desconstrução da música também. No Onde A Gente Morre tem muito disso: desconstruir e inovar. Ao mesmo tempo foi a nossa melhor experiência em estúdio porque a gente começou a aprender a como tirar um som que a gente quer, a brincar, ter uma capacidade de explorar novos sons e experimentar mesmo - foi muito importante pra gente nesse sentido.
É curioso você falar sobre destruição porque o título dá sentido nessa ideia, ou seja, "estamos enterrando o que foi o passado para iniciar uma nova era"...
É, pode ser visto por esse lado, você ter que matar e destruir para renascer e reconstruir… Mas também tem o lance que a gente sempre foi baseado no existencialismo e morte, então… Não sei, a gente não é pessimista, muito pelo contrário, é o lado afirmativo da vida, das coisas e tal… Mas a gente sempre teve essa relação com a morte no sentido existencial, mantê-la presente e saber que ela é uma realidade, sabe? Acho que é por isso que tentamos fazer a melhor experiência possível na vida. Acho que também tem a ver com essa fissura que a gente tinha com a morte - não sei se eu tava lendo os ensaios do Montagne, tem uma parte que ele fala: "filosofar é aprender a morrer" e isso marcou muito a gente -, manter essa relação e ter uma relação saudável.
"Sozinho Contra Todos" tem uma estrofe que me chamou bastante atenção: “saio pela rua e ninguém se parece comigo”. Pensei muito nela no pós-pandemia e também na relação das pessoas com as redes sociais. Estamos sem saída, pessimistas em um mundo distante?
Se um carinha que é radical ou de extrema-direita escutar "Sozinho Contra Todos" hoje pode achar o máximo e querer fuder com todo mundo e não é [sobre] o que a gente quis dizer na época, né. Essa música, assim como na literatura, foi feita a partir da criação de um personagem: um cara que é completamente anti social e meio que odeia todo mundo, sabe? Nessa época eu tava lendo muito Thomas Bernhard, que é um dos meus escritores preferidos, é um austríaco que é muito raivoso, mas ao mesmo não… É um cara que é muito polêmico nesse sentido… Eu vejo muito mais graça nele do que coisa negativa… Quem conviveu com ele dizia que ele era um cara insuportável, mas ele também era muito crítico e ranzinza nesse sentido de ser contra todos. Antes de ter a música, eu já tava pensando no clipe, inspirado nos filmes do Gaspar Noé [cineasta franco-argentino], principalmente no primeiro filme dele chamado Sozinho Contra Todos. Sempre foi no sentido da brincadeira… Como eu tava te falando, a gente meio que tava odiando, a gente virou hater do nosso primeiro disco - hater de falar mal, não conseguir escutar e ter vergonha. Hoje em dia eu consigo escutar o primeiro disco e entender, até gosto do nosso primeiro disco.
Você falou sobre a criação de um personagem, pode ser considerado um alter ego?
Acho que depende… Por exemplo, tem um autor argentino que eu gosto muito, o Ricardo Piglia, que tinha um alter ego chamado Emilio Renzi, então, na literatura, eu acho que é possível, mas pra mim, nessas músicas, são coisas tão curtas que acho que não pode ser chamado de alter ego, mas é uma forma de dizer coisas que a gente tem vergonha de dizer ou que não se anima a dizer dando as caras com o próprio nome. Acho que isso é interessante na arte: é um lugar que você pode romper barreiras, forçar limites, criar de uma forma mais livre até para falar coisas que você não deveria falar e vice-versa. Não vejo nada de alter ego na música, ao criar personagens é tentar ver perspectivas de outra maneira, fora de mim, muito influenciado pela literatura. A literatura tem isso, você ser forçado a uma empatia quase forçada mesmo, você tem que pensar pelos outros, então você sai um pouco de você e acho que esse transe, esse êxtase, sai de você e vai para os personagens e usei isso muito nas músicas por muito tempo. Hoje em dia, eu tô buscando coisas referenciais nas novas músicas.
Em "Onde Está Belchior" você canta: "eu tenho os olhos na estrada". O que você vê?
Belchior foi um artista que me influenciou demais, sempre gostei dele, mas não só das músicas, mais do que um cantor, ele foi um filósofo a moda antiga que a própria biografia dele era um exemplo dele, tinha a ver com a obra dele. "Onde Está Belchior" é a música que termina o disco Animais Feridos, que tem essa coisa de estrada e que ele também tem muito de estrada… Quando eu tava te falando que a vida dele como filósofo é um exemplo dele é que nos últimos 10, 15 anos antes de morrer, abandonou tudo e foi pegar a estrada para viver literalmente como nômade na América do Sul, a letra também trata disso; de você buscar a estrada, a liberdade da estrada e isso só foi segmentando essa coisa que eu já tinha com a própria estrada, com as viagens longas pela América do Sul e que casou perfeito.
O primeiro single do quarto disco, A Tentação do Fracasso, "Mesmo Coração", é uma homenagem também ao Belchior porque na música "Coração Selvagem", do disco Coração Selvagem (1977), ele fala: "Sim, já é outra viagem / E o meu coração selvagem tem essa pressa de viver", ou seja, ele tá falando pra quem tá criticando ele porque ele vai viajar de novo, vai sair de novo, não consegue ficar parado - é o nomadismo, entendeu? Eu faço essa brincadeira no "Mesmo Coração", a letra faz referência a essa música, eu falo: "Vem amor o novo tempo corre nesta estrada / Pode ser, nossa última chance / E eu guardei pra você uma frase nessa canção / Em meu coração, continua selvagem sem você" indo para um lado mais pessoal, fazendo essa brincadeira com a estrada, mas sempre a estrada muito presente. Como eu viajo muito, dirigindo, são os momentos que fico mais inspirado… Penso em coisas, em músicas, sou impactado por muitas ideias durante o momento que tô dirigindo. Acho que a música da Atalhos tem essa influência. Lá na Argentina tem um termo pra isso: rutera. Acho que casa bem com o que Atalhos faz e também o estilo, na estética da música da Atalhos. Nos últimos tempos, principalmente, a gente se inspirou muito em Bruce Springsteen, The War on Drugs e que mudou completamente a estrutura que a Atalhos faz som, principalmente na questão da bateria. Se você pegar a bateria de "Sozinho Contra Todos" e pega a bateria de "Mesmo Coração" é totalmente outra coisa, é uma coisa mais reta, mais básica e que dá essa sensação de viagem, de estrada, você não fica tanto tempo concentrado nas viradas da bateria, é quase uma constante, uma reta de uma estrada. A estrada é a parte que vai tá sempre junto com as músicas da Atalhos.
"Quando eu escutava Legião Urbana, eu gostava muito de várias referências ali que o Renato colocava nas letras. Por exemplo, tem uma música deles que se chama "A Montanha Mágica", e que foi a partir dessa música que eu quis ler o livro do Thomas Mann. Às vezes não tem quase nada a ver com a música em si, mas foi uma homenagem também que ele fez ali. Então, eu gosto disso, sabe? De que a música também não tem que se encerrar, que a experiência de quando você está escutando a música não se encerra na hora que a música acaba. Ela sempre deixa uma semente ali, alguma coisa que você pode depois buscar e se inspirar."
A Tentação do Fracasso saiu em 2022, cinco anos depois do último lançamento. Por que tanto tempo?
Esse negócio do tempo é interessante porque, a gente tava falando das músicas do Em Busca do Tempo Perdido, Sartre e tudo mais… Tem um autor que eu descobri agora que é Henri Bergson que foi um cara que escreveu sobre o tempo e que vai te ajudando a entender porque as pessoas que me influenciaram naquela época, que também foram influenciados por ele, o que tem a dizer sobre o tempo e o fato de que nós somos duração, de que as coisas vão acabando… Por exemplo, um conceito que eu coloco muito nas letras, nas coisas que eu ando escrevendo, é sobre a duração dos relacionamentos e a relação da morte com os relacionamentos. Quando você morre não tem mais nada, você não vai conseguir pensar, sofrer outra perda, você morreu e acabou; mas o que acontece nas relações é que muitas delas morrem e as pessoas que vivenciaram aquela relação sobrevivem a morte da própria relação. A memória dessa relação continua sobrevivendo como se ela tivesse existindo, mas ela não existe mais, ela existe apenas no tempo e na memória; e toda essa relação vai influenciando também a forma de pensar. Essa música nova que a gente lançou, a "Ayer Morí", tem um pouco a ver porque fala de estrada, do tempo, da memória e tem um pouco a ver com essa minha descoberta com o Bergson que me ajudou a compreender mais essas ideias existencialistas, compreender o efeito do tempo em cada um. A melhor forma de lidar com os efeitos do tempo é ir criando, favorecendo essa coisa da criação que me inspirou muito.
Eu fui muito longe da tua pergunta, mas demorou porque a gente demorou para lançar Animais Feridos, era pra ter saído antes. Quando a gente tava gravando o disco, eu fui convidado pelo meu amigo Eduardo Praça pra tocar bateria no ano inteiro na turnê do Quarto Negro, então já demorou aí Animais Feridos. Entre Animais Feridos e A Tentação do Fracasso também rolou dúvidas sobre se íamos lançar um novo disco ou não, porque os resultados… E a gente também tava querendo mudar o som. Animais Feridos não representou uma mudança, a gente queria fazer uma coisa nova, tava parecido com Onde A Gente Morre, então, só valeria a pena fazer um novo disco se tivesse algo novo, porque ia ficar mais do mesmo, sabe? Então comecei a mudar: mudei a forma de compor, até então eu compunha só no violão, mas com A Tentação do Fracasso eu comecei a fazer direto na guitarra e aí entra um novo estilo que a gente se encontrou mesmo. A gente conseguiu finalmente encontrar uma cara da Atalhos. Foi um disco que eu trabalhei com Ives Sepúlveda, do The Holydrug Couple, que criou umas camadas de sons que ficam lá atrás e que as pessoas não veem que estão ali. Foi um disco que a gente colocou muita textura, muitas camadas, muita massa sonora que mudou bastante e por isso que também demorou. E o principal foi a pandemia, porque o disco tava mais ou menos pronto e era pra ter sido lançado antes da pandemia e tudo isso demorou demais… Mas ao mesmo tempo a gente pode ir cantando esse disco aos poucos e foi bom por um lado.
"Ondas de Calor", o novo single da Atalhos
A faixa sucede “Ayer Morí” e introduz mais um pouco do universo do próximo álbum da banda. Dessa maneira, "Ondas de Calor" é um chamado a sonhar com o amor.
Colorindo a música, o videoclipe lo-fi mostra a banda, formada por Gabriel Soares, Conrado Passarelli, Fabiano Boldo e Nico Paoliello, em seu ambiente natural: fazendo som. O roteiro, assim como a edição, é assinado por Gabriel Soares. A direção é do Duo Cinza, direção de fotografia de Adriano Vanni, direção de arte de Tata Evagelidis, cor de Henrique Reganatti e finalização de Zumbi Post. A assistência de produção é de Gustavo Lot, assistência de fotografia é de Rafael Vieira e os stills são de Felipe Martins.
""Ondas de Calor" é uma balada em sol que fazia muitos anos que a gente não fazia e que a gente também gosta. Remete muito ao que a gente era, é um resgate no tempo, a redescoberta daquele tempo com novos elementos mais modernos que dialogam com os dias de hoje."
Assim que a conversa termina, lembro dos escritores - Rebecca Solnit, René Descartes, Virginia Woolf e Walt Whitman - que caminhavam para continuarem existindo. No entanto, é Jack Kerouac que me desperta imagens. Em On The Road, escreveu: "Qual é a sua estrada homem? - a estrada do místico, a estrada do louco, a estrada do arco-íris, a estrada dos peixes, qualquer estrada... Há sempre uma estrada em qualquer lugar, para qualquer pessoa, em qualquer circunstância." O texto confirma o que a Atalhos tem abordado: fugir do absurdo é uma necessidade para prosseguir o processo de existência.
Comments