Na quinta-feira passada, Eva Figueiredo colocou no mundo "Cria" (YB Music), seu primeiro álbum. Passando (e dançando) pelo baião, tango, funk e outros gêneros musicais, a cantora se apresenta ao público, mostrando sua personalidade, seu passado, suas memórias, belezas e inspirações. Sabemos que não é fácil compartilhar com o próximo sua essência, mas Eva faz isso com tanta simplicidade que parece ser fácil.
A leveza do álbum também faz parte da compositora e clarinetista: pelo zoom, Eva conversa comigo sobre o lançamento, suas crias, sua apresentação e a Cia. do Tijolo. Com a voz baixinha e um leve cansaço (no dia de seu debut, fez uma audição secreta do disco), ela responde as minhas questões, sorri, ri e filosofa quando pergunto sobre o mundo que ela deseja. A cada palavra, a mulher do outro lado da tela vai se mostrando cada vez mais verdadeira; seus olhos não a deixam mentir.
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Como foi fazer o seu debut?
Eu acho que eu fico muito curiosa, é muito estranho essa relação da gente, de agora, com os números, né? A gente que é artista tem acesso, talvez você saiba, aos outros aplicativos, onde a gente vai vendo em tempo real… Pra mim, eu fico imaginando as pessoas por trás dos números, os ouvidos, as citações, se a pessoa tá ouvindo enquanto dirige, se tá ouvindo na casa dela… Aí você vai vendo os países, em alguns países eu reconheço que tem pessoas que são público, em outros países eu fico “meu deus, olha só, tem uma pessoa me ouvindo lá não sei onde” [risos]. Então, é muito doido esse formato de lançamento virtual, acho que foi por isso que eu quis juntar as pessoas para lançar presencialmente - claro, ainda vai ter os shows de lançamento em São Paulo, Curitiba, Florianópolis… Mas essa sensação de “uhul, agora vamos ouvir” [risos].
Você se apresenta em “Cria”. Como foi esse processo de compartilhar com o ouvinte quem é Eva?
Eu senti que esse primeiro disco é um cartão de visita, que o público vai me conhecer agora, a partir do disco… Claro, tenho uma trajetória longa da música, antes disso, eu tocava na Orquestra Sinfônica do Estado de Santa Catarina de clarinetista, toco ainda em uma companhia de teatro em São Paulo, a Cia. do Tijolo, que é uma importante companhia teatro de grupo, fazia trabalho como intérprete, gravando e tocando pra cima e pra baixo, mas é muito diferente a perspectiva de trabalho solo, né? Pensar sobre o que eu quero contar e como vou contar. Eu achei justo e honesto começar contando quem sou eu, então, esse disco é um pouco sobre isso. Claro, a gente é uma dimensão grande e complexa, cheia de - como eu posso dizer? De afetos, de atravessamentos diferentes, mas senti que tinha algumas coisas importantes que eu queria contar, as coisas que me encantavam, como eu penso o mundo, o que me emociona… também responder um pouco ‘de onde eu venho’ … Tem uma música que eu ofereço para minha mãe, que é o “Futebolista”, minha mãe é apaixonada por futebol, “Dona Fia” eu ofereço para o meu pai, por conta de uma história de infância, “Samba da Utopia” [é uma] relação com a militância, essa militância que é ser artista e desejando um mundo mais justo, um mundo poeticamente correto, penso muito no caminho da poesia para essas transformações.
A questão de se apresentar ao público, não foi um pouco difícil? Se mostrar por completo é muito difícil, né. Foi um processo natural para você?
Eu acho que faz parte, de todo artista; acho que todo artista é um pouco biográfico, mesmo nas diferentes linguagens, pensando na pintura, na dança… A gente tá sempre falando da gente, mesmo quando a gente não quer [risos]. Não sinto que é difícil, sinto que é gostoso, que é escolher também com cuidado o que você vai entregar para o outro - e eu falo isso como artista e como público - a gente tem essa chance de se reconhecer no outro, é uma chance bonita. Fico escolhendo coisas que eu imagino que vou compartilhar e que na verdade vão para além da ideia do cartão de visita, do disco. Se contar parece um pouco ensimesmado, um pouco autocentrado, mas o sentido não é esse, o sentido é do compartilhar o mundo - “olha, tô olhando para aqui, olha junto comigo para essa coisa que eu tô olhando”, o olhar se desloca.
O que te levou a criar o “Cria”? Qual foi o momento que você percebeu que você queria dar voz a suas próprias criações?
Foi com a chegada do meu filho. Eu tenho um filho de 5 anos e depois que eu pari ele, eu senti… Ficou muito fácil parir as outras coisas. Eu senti uma força a partir do parto, parece uma urgência; e acaba que esse tema atravessa o disco. Tem “Erre” que eu fiz junto com ele: ele chorava “erre” e eu fui compondo logo nos primeiros dias do puerpério, mas tem também “Carnaval” que é dedicada para uma criança, “Janela” é dedicada para outra criança - não é um disco infantil, não é um disco sobre maternidade, mas esse tema tá ali. E aí todos os arranjos do disco foram criados quando ele ainda era bem bebê, agora ele tem 5 anos, mas o diretor musical [Guilherme Kafé] ia em casa, esperava ele dormir, aí a gente, das oito à meia-noite, ficava criando os arranjos; isso foi final de 2017. Primeiro, eu montei o show para depois gravar o disco.
Em “Samba da Utopia”, você traz esperança cantando “Se o mundo ficar pesado, eu vou pedir emprestado a palavra poesia”. Qual a sua ideia de um mundo melhor?
É bonita essa pergunta, porque a gente já sabe o que não quer, né [risos]. Eu faço parte de uma companhia de teatro e o compositor dessa música, que é o Jonathan Silva, fez essa música para um espetáculo da Cia. do Tijolo, aí depois a Ceumar gravou - eu tô no coro dessa versão - conto tudo isso para chegar na resposta. A Cia. do Tijolo é o lugar onde eu sonho junto com os meus as utopias. A companhia dedica um espetáculo para Patativa do Assaré, outro para Paulo Freire, outro para Frederico Garcia Lorca e nosso último espetáculo para Dom Helder Câmara, ele tinha uma frase muito célebre: “Se eu dou de comer aos pobres, me chamam cristão. Se eu pergunto porquê os pobres são pobres, aí me chamam de comunista”. A companhia de teatro é um bando de ateu, mas a gente acabou conhecendo a turma dessa ala progressista da igreja, figuras interessantíssimas, como o Leonardo Boff, Ivone Gebara… O Leonardo Boff falou um negócio pra mim que responde a sua pergunta: “O oposto da pobreza não é a riqueza, o oposto da pobreza é a justiça”. Então, fico pensando em um mundo justo, esse mundo que eu desejo, mas que tenha a poesia do Patativa, que tenha o teatro de Lorca, a música de Jonathan Silva, onde a gente tenha outra relação com o tempo… Sinto que na nossa vida de hoje, a sociedade do cansaço, vive essa relação dura com o tempo. Eu desejo também as utopias daqueles que estão pensando na terra, ligados com a natureza, aí a gente vai na turma dos diversos povos indígenas, que pra eles o mundo já acabou várias vezes… A gente tem muito que aprender com eles.
O teatro te ajudou no processo de compor e performar suas canções?
Quando vão me apresentar, me colocam como atriz junto e eu não sou atriz [risos]. Eu entendo, claro, porque faço parte de uma companhia de teatro, mas é que eu tô sempre tocando em cena, esse é meu barato, juntar com o povo do teatro, mas para tocar. Inclusive, foi o tema do meu mestrado, que eu acabei de fazer, sobre música de cena, sobre a grande composição que é fazer música para um espetáculo. Eu tenho enorme admiração pelo povo do teatro e a maneira de como eles entregam a palavra, a maneira do corpo presente, acho que esses diferenciais em relação a música sao muito preciosos… Como eles interpretam, no sentido de ouvir dentro a palavra e entregar para o outro… Sinto que eles e elas são fonte de inspiração e também como de estética. Essas coisas me alimentam.
Suas canções variam entre diversos ritmos. No final, você quer que o ouvinte também dance com você?
Acho que o primeiro trabalho de vários artistas têm essa característica de diversidade, de mostrar muitos temas, muitos ritmos, até pensei: “O próximo trabalho pra ficar mais fácil de explicar, eu podia, primeiro, escolher o conceito, primeiro o tema, e aí girar tudo envolta de um tema vai ser tão mais fácil contar para os outros” [risos]. Como é sobre essa minha apresentação para o mundo, é sobre uma trajetória também, né. Acaba que esses ritmos vem junto com essa trajetória. A última música, “Aboio” fala dessa relação do boi e eu sempre brinquei das brincadeiras de boi, tô falando de Florianópolis e cresci aqui, depois fui para São Paulo e brinquei com as brincadeiras de boi do morro do querosene, então, tem a ver com essa trajetória. Eu sinto que tem também um movimento musical acontecendo que tá acontecendo agora, uma nova mpb, não são os artistas que se intitulam assim, mas nomeiam assim que é para diferenciar de Tom Jobim, Vinicius de Moraes, Chico Buarque, Caetano Veloso… Acho que é isso que dá unidade ao disco, apesar de ter vários temas, vários gêneros musicais, tem essa roupa que veste todas as músicas.
Em um determinado momento da conversa, Eva comenta suas inspirações, chegando em Ná Ozzetti. Lembro da capa do disco "Estopim" (1999) e penso na própria capa de “Cria”, onde a cantora está sorrindo e pulando - em ambas, a performance do corpo, dança e música, as diversas artes juntas. No fim, criar é isso: colocar no mundo a cria (que é imensa e poderosa) e ser resistência.
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