Em "Uivo" (1956), Allen Ginsberg aborda o carma da geração norte-americana. Misturando realidade, ficção e o fluxo de consciência, o escritor beat foge da estética tradicional da poesia para relatar, livremente, a raiva e o desespero da sociedade americana dos anos 50. "Eu vi os expoentes de minha geração destruídos pela loucura, morrendo de fome, histéricos, nus…", escreve. No decorrer das palavras, o poeta beatnik retrata os delírios causados por drogas, as perversidades, o sexo devasso, a luta contra a censura e os rumos que os Estados Unidos tinham tomado.
Sessenta e cinco anos se passaram após a primeira publicação do poema e o uivo de Ginsberg respinga nos dias de hoje. Em 2021, assistimos homens e mulheres destruídos pela loucura, morrendo de fome, histéricos por conta da situação brasileira e sem esperanças. Seguindo os passos do escritor e se inspirando em AIYÉ, Boogarins e Vítor Brauer, surge AIUKÁ, projeto solo do músico, compositor e escritor, Guilherme Krema.
Criado durante a pandemia, AIUKÁ conta com o single "Refúgio", lançado no início deste mês, que busca encontrar conforto em meio ao caos que o Brasil passa. Entre notas musicais e elementos eletrônicos, Guilherme Krema canta e, em alguns momentos, recita a letra, dando continuidade a linguagem livre da geração beat.
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AIUKÁ surgiu no meio da pandemia. Qual o seu significado e por quê apresentar agora?
Os últimos anos antes da pandemia foram particularmente intensos. Viajei muito, fui a diversos shows, conheci muitas pessoas e tive centenas de epifanias relacionadas ao modo que a cidade exerce influência nas nossas interações como coletivo. Nesse tempo, cursei todas as cadeiras da faculdade de artes visuais, transformei em poesia muita das reflexões e inquietações desse período. Com o objetivo de me conectar com a natureza e meu imaginário pessoal, no final de 2019 fiz um mochilão pelas praias de Santa Catarina, e vivi uma sequência de experiências que me trouxeram novos olhares sobre o místico e minhas próprias raízes ancestrais. Foi aí que me deparei com AIUKÁ, uma palavra iorubá, que significa "fundo do mar", e tomou grande significado devido a esse tempo que passei tão conectado com o mar. Voltei para a cidade em fevereiro de 2020, pouco antes do início da pandemia, e ao mesmo tempo que a reclusão forçada foi um choque - o meu processo criativo aflorou muito rápido. Buscar novos processos de composição para expressar minhas vivências foi um caminho natural.
"Refúgio", seu recente single, aborda temas e sentimentos que todos, ou quase todos, passaram durante a pandemia. Como foi o processo dela? Como foi escrever a canção?
A verdade é que quando escrevi o poema que originou a canção eu nem imaginava tudo que ainda iríamos viver. Escrita na metade de fevereiro do ano passado, a "loucura" a que me refiro é o fanatismo ao atual "presidente" e as manifestações pró-ditadura que já estavam acontecendo naquela época.
"Refúgio" conta com diversos gêneros musicais, me lembrando, no decorrer da canção, um grito sobre o que estamos vivendo. Essa foi sua intenção? É um grito sobre o genocídio que estamos vivendo?
Não era minha intenção principal, mas o próprio tempo foi ressignificando ela. A mistura caótica de elementos e o tempo bagunçado da canção foram pensados pra transmitir angústias e incertezas, mas não tão intensas como as que vivemos agora. A situação desesperadora que vivemos no país me causa uma raiva muito grande direcionada ao descaso com as nossas vidas, e ainda nem consigo criar a partir disso.
A canção me lembrou uma mistura de Vítor Brauer, Lupe de Lupe e as poesias de Ginsberg. Você comentou que tem uma mistura entre os elementos, de forma inconsciente. Qual o impacto desses artistas na sua vida?
Cresci com uma vontade muito grande de viajar, conhecer pessoas e novas realidades. O meu encontro com a literatura do Ginsberg e dos Beats foi uma reafirmação desses valores que eu já desenvolvia desde pequeno. Sou apaixonado por literatura, trabalhei nesse meio durante um tempo e tenho contos e poesias publicadas em coletâneas Brasil afora. Muitas das minhas pesquisas e paixões literárias transbordam no que escrevo, e muito do que escrevi nos últimos anos está compilado nas canções do EP ["Tigres Vermelhos em Marte Caçando Estrelas Cadentes", que deve ser lançado em breve]. A influência do Brauer é parecida, já que desde a primeira vez que ouvi Lupe de Lupe e li sobre as turnês "improvisadas" do Brauer, eu senti essa conexão e reafirmação de muitas crenças particulares que envolvem ir pra estrada na busca de concretizar sonhos e desejos.
O meu primeiro projeto musical se chamava "Ao Sul de Nada", com os companheiros desse projeto, eu toquei durante dois anos na rua, com violões, vozes acústicas e chapéu no chão para arrecadar o dinheiro que nos possibilitaria seguir viagem. Juntos, fomos e voltamos de Montevidéu, numa viagem de mais de 2 mil quilômetros percorridos com caronas na estrada.
Em "Refúgio", você canta e recita: "Sob alucinógenos / As ruas dormentes gemem / E os egos se debatem / nas paredes turvas da realidade". Os alucinógenos seriam o que, os remédios para aliviar a tristeza ou qualquer situação do dia a dia?
Eu falo de alucinógenos mesmo. Essa frase sintetiza bem o ambiente em que o EP se passa - uma atmosfera noturna e cosmopolita, um personagem sob efeito de alucinógenos vaga entre vozes, visões, festas e bares, procurando antigas paixões e pessoas de quem sente saudade. A maior parte das letras foram escritas antes da pandemia, mas as canções de fato nasceram já em isolamento, então, muito disso está ressignificado ao contexto atual, já que ansiedade, saudade e solidão são sentimentos que muitos de nós partilham nesse momento.
Depois de pegar a estrada para se conhecer e buscar a espiritualidade desejada, Jack Kerouac descreveu suas impressões pelas ruas americanas. "Qual é a sua estrada, homem? A estrada do místico, a estrada do louco, a estrada do arco-íris, a estrada dos peixes, qualquer estrada… Há sempre uma estrada em qualquer lugar, para qualquer pessoa, em qualquer circunstância. Como, onde, por quê?". A estrada é dolorosa, mas possível de conviver e transformar o ser humano - como diz a música de AIUKÁ.
Seu single surgiu na pandemia e foi mixado em seu quarto, um local em que o "estrangeiro" não consegue entrar. Como foi essa experiência?
Os meus processos de composição para os outros projetos musicais que eu tive sempre envolveram o modo clássico de voz e violão, mas há tempos isso já não refletia a sonoridade que eu buscava para transmitir o que escrevia. Foi um momento de experimentação solitária, mas de grande conexão com minhas próprias ansiedades e paranoias, através de instrumentos reversos e texturas eletrônicas, explorando como produtor as possibilidades e caminhos da criatividade mais espontânea que eu já experimentei. Foi um processo muito prazeroso de redescoberta pessoal.
Inclusive, quais são as dificuldades em produzir durante esse período? Tem sido fácil escrever, produzir?
Tem sido absurdamente difícil produzir. As canções que vou lançar nasceram em um período ainda de transição, em que era difícil prever até onde tudo isso iria chegar. O número absurdo de mortes, o descaso do governo e o avanço do pensamento conservador me causam tantos sentimentos ruins que tem sido praticamente impossível escrever ou produzir músicas nesse momento. Tenho encontrado conforto nesse processo de lançamentos, mas produzir músicas novas nesse momento ainda é um pouco utópico.
Seu futuro EP "Tigres Vermelhos em Marte Caçando Estrelas Cadentes" contará com sete canções baseadas nesse estilo de criação. O que podemos esperar? As canções seguirão o mesmo estilo de "Refúgio"?
O processo de cada música foi experimental e muito particular. Maior do que buscar uma sonoridade de mercado ou seguir estruturas óbvias, busquei me entregar ao processo de composição e produção, descobrindo onde cada música poderia soar mais sincera e realmente refletir tantos signos que carrego no meu imaginário. "Refúgio" é mais experimental em questão de sonoridade, mas a maioria não possui refrão, as vozes alternam entre trechos cantados e recitados e as texturas eletrônicas se unem a ritmos incomuns. Hoje, analisando as canções com um olhar mais distante, consigo traçar paralelos entre os trabalhos mais experimentais de músicos como Thom Yorke e Bjork. Claro que passo longe da genialidade deles, mas certos pontos em comum não são tão difíceis de encontrar.
Sempre vivemos em um país que não se importa com a cultura. Por que continuar fazendo arte?
Eu também sou produtor cultural e acredito que a arte tem o poder de se manifestar nos lugares mais improváveis, então é meu papel estar atento e ativo, buscando através da arte a transformação do meu ambiente. E, particularmente, nesse momento, a arte me ajuda a manter a sanidade. É resistência, é afirmação de valores, é transformação pessoal e afirmação do meu ser político.
Tristeza e angústia são alguns dos diversos sentimentos que passamos. Você sente que precisa entregar aquilo que estamos vivendo e sentindo? Tem pressão dos ouvintes?
O meu propósito principal era ser genuíno e sincero, partir sempre do meu ponto de vista sobre as situações e sobre o outro. Sinto que preciso entregar aquilo que eu vivo e sinto, acontece que no momento partilho da tristeza e da angústia da maioria.
Ginsberg escrevia para todos, sobre todos. Quando estava vivo, disse para seus pupilos: "Siga seu luar interior; não esconda a loucura". Guilherme compreendeu e seguiu a filosofia do escritor, pois mostra-se o seu verdadeiro, sem medo.
Quais os planos para o futuro? O que podemos esperar do seu EP?
AIUKÁ foi um projeto contemplado pela Lei Aldir Blanc, e assim que os shows voltarem a acontecer, terei cinco apresentações para fazer ao lado de grandes amigxs que toparam repaginar essas canções em formato de banda. Espero que quando as coisas melhorarem, possamos viajar tocando esse disco também.
Enquanto tudo isso ainda é sonho, me mantenho focado nesse processo de lançamentos. Vou lançar mais 2 singles nos próximos dois meses, antes de largar o EP cheio. Quem se interessar e me acompanhar nesse caminho vai ser presenteado com um registro muito pessoal e experimental, que reflete muito o que sou, sinto e sonho. É um disco estranho e diferente, mas justamente sobre abraçar essa estranheza pessoal, sem negar tristezas, paranoias e ansiedades, mas utilizá-las como forma de expressão e libertação.
"Refúgio", do AIUKÁ já está disponível nas plataformas dos principais aplicativos de streaming.