Em O Corpo Encantado das Ruas (Civilização Brasileira, 2019), Luiz Antonio Simas escreve: "Não se faz festa porque a vida é mole, mas pela razão inversa". No decorrer das páginas, o historiador apresenta motivos para reinventar afetos, para que corpos amorosos, de festa e de luta se lancem ao movimento e jamais deixem de ocupar a rua. Celebramos o carnaval (e tantas outras festas) pela sobrevivência. "Eu acho que é da condição humana fazer celebrações - não é como se fosse "a vida de verdade é o trabalho e a festa a gente inventou para ser o anti-trabalho." Não! As duas coisas sempre existiram", dia André Mourão, músico, compositor e amante de celebrações.
Foi a partir de seus olhares, vivências, amores e revoltas que lançou Câmera Analógica (2021), seu primeiro álbum. Em 11 faixas, André Mourão passeia entre músicas introspectivas e outras mais dançantes, seguindo o ritmo de um bloco de carnaval. Enquanto canta e se apresenta, o músico pega na mão do ouvinte, chamando-o para uma dança. Como diz em "Olho por Olho": "Tira a cara do celular, vem para o carnaval, para a rua."
As imagens presentes no disco, consequência da narrativa criada, talvez estejam esquecidas ou em preto e branco, mas é possível dar um novo sentido nelas. A estrada segue adiante e, por mais que estejamos todos aflitos e cansados, é necessário chegar ao final. Como escreveu Simas: "(...) A festa em tempos de crise é mais necessária que nunca. A gente não brinca, canso de repetir isso, e festeja porque a vida é mole; a turma faz isso porque a vida é dura. Sem o repouso nas alegrias, cá pra nós, ninguém segura o rojão." Vista-se com roupas confortáveis e se jogue no bloco de André.
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Você é filho do cantor e compositor Pedro Mourão, integrante do Grupo Rumo que revolucionou a música paulistana. Você acha que ele te influenciou para seguir o mesmo caminho?
Sim, aconteceu. Teve muita influência, óbvio, por ter um pai músico em primeiro lugar. Quando eu era criança, eu nem sabia direito o que era o Rumo, mas tinha aquele disco feito para crianças, Quero Passear (1988), que você deve conhecer. Então, para mim, o Rumo era aquele disco, porque aquele disco foi muito também incentivado pelo meu pai, né? Porque ele já era professor de criança e tal. Então, ele que propôs, acho que dentro do Rumo, fazer um disco voltado para crianças. E foi meio que um disco, assim, para o tamanho do Rumo, que é um grupo ainda bem pouco conhecido no Brasil inteiro, né? Em termos de números, uma coisa quase que irrisória, assim, né? Apesar, enfim, da qualidade do trabalho. E, então, ele fez o disco, até que acho que foi o disco mais vendido da banda e criou um... Foi meio que, assim, a sementinha do que é hoje em dia a Palavra Cantada, né? E, então, eu conhecia muito aquele disco. Eu ouvia muito aquelas músicas, a música do carro, aquilo tudo. Aí comecei a me interessar por música para além do meu pai, que era uma coisa meio obrigatória, assim, fazer aula aqui na escola e tal. Mas, aí, depois, quando eu comecei a gostar de música por minha conta e por amigos, comecei a fazer banda e tal. Quando eu tinha 14 anos, em 2004, então, o Rumo naquele ano, ele estava… Eu lembro que foi o primeiro show de reunião deles, grande, desde que a banda tinha terminado. Terminou, mais ou menos, quando eu nasci, um pouco depois de 90, assim. E, aí, de repente, teve esse super show de 30 anos de fundação da banda e foram três dias lotados no teatro do Sesc Pompeia e tal. De repente, eu me vi naquilo lá, olhando e falando assim, "então, quer dizer que o Rumo, essa banda do meu pai, tem outras músicas além das músicas lá para crianças e tal?!" E aí, eu fui num show e fiquei muito, muito impactado. Muito impactado pelo show, pela diversidade de canções que tinham ali e os arranjos que eles faziam, que saiam. O Rumo era muito doido, né? Quer dizer, às vezes era um só no palco, ou três, às vezes era a banda inteira. Aí, aquele lá trocava de instrumento e tal. Então, tinha uma dinâmica, os shows foram muito bonitos e, aí, a partir daquele show, eu virei um fã, tipo, de carteirinha que sabia tudo de cor, qual faixa que tá em que disco… Fiquei realmente impactado, assim, para além do meu pai, né? Impactado por aquela banda com mais 10 pessoas, além dele, muitas músicas das quais ele nem participava. Então, fiquei meio encantado. E foi bem num período bem formativo, assim, né? Quando você é adolescente, 14 anos. Então, realmente, é uma coisa que, se eu tento escapar, às vezes disso, quando eu vejo, isso aí volta e tá muito em mim mesmo. Tanto que eu acabei de lançar o single, que é uma reinterpretação de uma música do repertório do Rumo, né?
Quando você viu o show na adolescência - e na adolescência, a gente descobre tudo e vai se identificando - você foi impactado. Hoje em dia, o que o Rumo significa para você, e ainda mais depois do single que você lançou?
Olha, eu acho que, de alguma forma, continua nesse mesmo lugar. De eu realmente perceber que a obra do Rumo, se você pega os seis discos que eles têm, tudo que tá ali, é uma coisa muito forte, é um trabalho muito consistente, muito original, muito inventivo. Tanto do ponto de vista das canções, que é mais óbvio as pessoas comentarem, né? Da coisa do ser meio falado e tal, quanto também do ponto de vista dos arranjos, assim. Eram os arranjos mais inventivos, acho que pela diversidade das pessoas que estavam na banda, né? Você pega, por exemplo, a carreira solo depois do Luiz Tatit é incrível. Luiz é um grande compositor e tal. Mas em termos de inventividade musical, assim, é diferente do Rumo. Não tem uma coisa tão... É uma coisa mais... Um trabalho mais, digamos, profissional, assim, com músicos mais de estúdio, que é ótimo também, não estou fazendo um juízo de valor, mas o Rumo tinha uma coisa mais bagunçadinha, assim, e que os arranjos, de repente, tinham uma coisinha ali, a bateria fazendo isso. Então me influencia muito. E, às vezes, eu me vejo, assim, querendo sair um pouco disso, né? Porque, claro, eu não sou o Rumo, nem sou meu pai e tal, e eu acho que meu trabalho, por exemplo, meu disco não tem muita coisa a ver com o Rumo. Mas quem me conhece, meus amigos, pessoas músicas e tal, o pessoal sempre fala assim, às vezes fala assim: "ah, o seu jeito de falar parece o Rumo", mas, tipo, às vezes o meu jeito de cantar, sem eu perceber, ele cai em uma coisa um pouquinho mais falada do que... Que as coisas estão sendo misturadas, né? Mas, às vezes, cai em uma coisa um pouquinho mais uma dicção, um pouco do Rumo. Então eu sinto isso muito forte em mim. É uma coisa bem presente, dentre tantas influências que a gente tem, o Rumo é uma coisa bem presente.
Antes de você lançar a sua carreira solo, você participou de outros projetos, né? Queria saber de você se essas participações nessas bandas te auxiliaram e te construíram para ser quem você é hoje no solo?
Sim, sim, com certeza. Eu tive, vamos ver, eu tive uma banda durante alguns anos chamada O Maquinista, né, que é uma banda com mais três queridos amigos, somos amigos até hoje, todos são músicos, todos têm seus trabalhos, né, que é o Renato Medeiros, o Tomás Bastos e o Matheus Marques. Todos, o Renato acabou de lançar um disco super legal, o Tomás é da Trupe Chá de Boldo, o Matheus é um músico, um grande baterista que tem um trabalho autoral também e hoje em dia é baterista também da banda Rastapé. Ah, e ali foram anos formativos, né, primeiro a gente era uma banda que fazia covers de muitas coisas, desde coisas mais pesadas, Metallica, Korn...
Jura?
Aham, aham, a gente tocava, tinha uma coisa mais pesada, assim, System of a Down, mas também passava daí por Red Hot Chili Peppers, Rage Against the Machine, Beatles também, tinha sempre uma coisa assim, eu trazia mais os Beatles, o Matheus na época era mais do metal, então ficava uma coisa, e aí quando a gente tinha 20 e pouquinhos, na época da faculdade, aí a gente começou a compor, eu comecei a compor, o Renato, o Bastos, aí virou uma banda autoral, e a gente tocou um pouquinho em circuitos universitários, festivais na USP, em alguns outros lugares, mas aí nunca foi pra frente no sentido de a gente nunca gravou, nunca fez um álbum e tal, mas essas coisas ficam com a gente, né?
E foi difícil também fazer essa transição de sair de uma banda com os amigos pra seguir sua carreira solo?
Não, não foi porque também, assim, a minha trajetória como artista, ela não é tão linear e também não tão constante, eu percebo que, agora já tô com 34 anos, eu não sou tão novo assim, eu sou um artista com uma característica um pouquinho bissexta, como se eu fosse um artista bissexto, quer dizer, eu não me dedico a ser um artista integralmente, tem uma formação que desde muito jovem, pensando música, fazendo música, compondo, tô sempre no certo sentido tá sempre comigo, mas aí eu me formei em música na USP, com especialização em licenciatura, eu também sempre fui professor de música, foi o que me sustentou, e aí eu tive bandas, participei do Maquinista e alguns outros projetos também, trabalhei um tanto com teatro, fazendo trilha sonora e criando junto, tive algumas incursões aí, também fui um pouco pra área acadêmica, na universidade fiz mestrado, a ver com música, mas na faculdade de educação, e ao longo dessas coisas, eu ia compondo e tal, até que eu pensei assim “preciso fazer um disco meu”, e acho que esse processo começou em 2018, e foi sendo feito aos pouquinhos, aquela coisa de disco independente, sem muito dinheiro, então vai fazendo ao longo de uns anos, aí acabou saindo uns 3 anos depois disso, então não teve uma coisa assim, como se eu tivesse sido uma banda que realmente tinha uma carreira consolidada, e aí eu saí da banda e fui pro solo, foi uma coisa um pouco mais errante nesse sentido, uma coisa mais, sei lá, mais independente nesse sentido disso, que eu nunca fui um artista integralmente, artista o tempo todo, então pra mim não teve esse problema não.
É curioso você me contar isso, porque agora faz muito mais sentido, porque quando eu ouvi Câmera Analógica, eu senti tantas coisas que não ficam só na música, são letras, melodias, que falam também com o corpo, e também tem um tom teatral, né?
Interessante! Fala mais! [risos]
Eu acho que a capa já diz muito, o nome é muito forte, foi muito engraçado, porque quando eu ouvi pela primeira vez, eu tentei me relembrar o que eu estava sentindo em 2021, durante a pandemia, durante estar trancada, todo aquele inferno, e eu não conseguia visualizar. Mas eu lembro de sentir saudade do carnaval. Então aquela coisa de marchinha, o corpo entrando, aquela felicidade, toda aquela melancolia, eu lembrei. E aí quando eu falei “tá, eu vou tirar a minha mentalidade de 2021, e agora eu vou colocar em 2024”, ele ganhou outra potência. Tipo, não existe mais uma prisão, tudo bem, o mundo continua ruim, continua decaindo, tem seus problemas, mas está muito, muito, muito melhor do que antes. Então a gente sai daquela câmera analógica para viver, e talvez eu não precise ir atrás dos registros, porque ainda tem sede de viver, sabe?
Sim, nossa, e é muito interessante ouvir isso, quer dizer, então você ouviu o disco agora, em 2024?
Isso.
Muito interessante, porque as coisas mudam dependendo do contexto, né? A sua audição e tal é muito interessante. E olha que louco, teve um lado, falando uma coisa pessoal, teve um lado que foi muito difícil lançar um disco no meio da pandemia. E ainda era, não tinha liberado mesmo, ainda ninguém se encontrava, porque foi o primeiro semestre de 2021. Então foi difícil não ter show de lançamento, teve um lado que foi difícil mesmo. E aí acho que esse lado que ficou um pouquinho amargo da memória, da lembrança, eu estou ficando em paz com essa memória agora. Agora eu estou percebendo, então, para mim mesmo, o disco ficou com uma lembrança desse lançamento, porque o processo de fazer ele foi muito bom, foi muito legal, foi o contrário disso, eu botei muita gente no estúdio, eu trouxe muita gente, tem muitas participações, você ouve os coros, por exemplo, da música que é de carnaval, "Olho no Olho", tem seis cantoras fazendo coro, um monte de gente gravando. Teve um dia que eu trouxe umas 30 pessoas para gravar também barulhos de carnaval e fazer aquele coro que fala "sim", na hora da música "Câmera Analógica". Botei 30 pessoas, fiz disso meio uma festa de encerramento das gravações. Aí corta a cena para eu lançar na pandemia, foi o oposto disso, sabe? Enfim, coisas muito normais de um primeiro trabalho que você lança, depois você fica olhando e falando assim: "isso eu faria diferente, isso eu faria diferente, isso eu faria diferente", o que é muito normal. Então, juntando isso com o amargor de lançar na pandemia, eu fiquei meio assim com o meu disco, trabalhei muito pouco a divulgação dele, e deixei ele meio assim, hoje em dia, agora que eu fui fazer o meu primeiro lançamento depois de três anos, que eu ouvi, eu tenho ouvido ele com mais carinho, e falado assim: "poxa, essa música é legal, essa música é legal", então é muito bom ouvir um relato como o seu, Michele, porque é legal, quer dizer, as pessoas daí escutam agora, talvez muita gente tenha ouvido mesmo em 2021, e putz, talvez tenha ouvido aquela marchinha e falado assim: "nossa, que coisa". Eu lembro também que eu lancei o primeiro single do disco, foi logo antes da pandemia, porque a marchinha "Olho no Olho", foi o meu primeiro lançamento, artista, solo e tal, porque essa marchinha tinha ganhado um festival de marchinhas de São Luís do Paraitinga, que é um festival super legal lá e tal, e eu tinha ganhado logo antes do carnaval, o pessoal falou “lança, lança, lança”, eu lancei, gravei um clipe no carnaval, e duas semanas depois tudo fechou. Então, meu primeiro lançamento foi isso: “Olho no Olho”, um negócio super pra cima, não sei o que, já com clipe sendo gravado no carnaval. Aí, quando tudo fechou, eu pensei: “bom, o que eu faço agora?” Falei: “ah, vou lançar mais um single.” Aí, acho que foi maio daquele ano, ou seja, três meses depois do lançamento do carnaval, onde ainda tava todo mundo na rua, eu lancei uma música da qual eu gosto muito, que se chama “Infinito Escuro”, que é uma música com uma letra super existencial, assim, e meio psicodélica, e meio em tom menor, e uma música que uma hora fala assim: “quero muito, quero tanto ver alguém.” e combinava com o momento. E as pessoas falaram: “nossa, que música pra lançar agora”, mas ao mesmo tempo tinha um clima de baixo astral, junto com a música, que eu acho uma canção bonita. Então, eu vejo que teve muito esses contrastes, meu disco tem um carnaval, mas tem uma pandemia quando ele é lançado, então, de fato, tem muita coisa dentro dele, muitos assuntos variados.
E o que também me chama a atenção é que você acabou de falar que o processo dele foi muito bom, você conseguiu se despedir, colocar a gente no estúdio e tal, houve vida, depois houve morte, mas o teu álbum também traz muito de vida, mesmo a gente não conseguindo viver naquele tempo, né? E não só isso, é relembrar também dos momentos bons que nós tivemos, principalmente no carnaval. E aí eu queria te perguntar, antes da minha outra questão existencial, o que significa carnaval pra você? Por que ele é tão importante?
Cara, primeiro… Eu sempre falo pras pessoas meio de brincadeira mas sério: “carnaval não é só alegria, tem um monte de drama e perrengue e tristeza junto”, mas é um momento muito vivo, de vida. Me lembrei do Edinardo agora, né? “Porque cantar parece não morrer” [estrofe da canção “Enquanto Engoma a Calça”], né? Carnaval é isso um pouco, né? Carnaval é igual a não morrer, né? Acho que tem isso, é uma coisa muito viva, uma pulsão de vida, como dizem alguns. Mas eu acho que é por aí, tem uma coisa, não é só alegria, não é só… Porque senão a gente entra também num negócio muito consumista, mas pra mim carnaval é… Pra mim, pessoalmente, tem uma história aí longa de ter descoberto o carnaval descoberto mesmo [ênfase na palavra] assim, por mim mesmo, com uns 22 anos, e aí entrei com tudo pra cantar no carnaval, na rua, e tocar e tal, então foi um momento de descoberta minha, também como, talvez até como mais do que cantor, como artista, o corpo e tal… Pra mim carnaval tem algo parecido com rock and roll, quando a gente tá na rua cantando, a energia é meio parecida, não tem exatamente um jeito certo de dançar, não tem um passo certo de dançar, então é uma coisa meio rock and roll, meio punk.
Agora vou pra minha questão existencial. Quando você tava em produção, quais eram as imagens que você tinha pra formar a sua câmera analógica? Quais eram as imagens que formaram durante o lançamento em uma pandemia? E hoje em dia, as imagens que você desenvolveu nesse decorrer de tempo continuam as mesmas ou elas nem existem mais?
Nossa, é uma pergunta complexa [risos]. Boa pergunta, mas vou ter que recortar alguma coisa aqui da cabeça. Eu acho que uma coisa que eu já ia falar, e que se encaixa nisso que você perguntou, é que como foi meu primeiro trabalho e como eu disse eu sou um artista lento, né, não no sentido de qualquer julgamento mas que produz ao longo do tempo sem uma necessidade de ter que produzir agora e tal… Meu primeiro disco tem músicas muito antigas que datam, por exemplo, tem uma ali que eu acho que é de 2012 entendeu? Porque o primeiro disco de uma pessoa que tava compondo desde o começo dos 20 anos, até antes, então tem músicas… Também um pouco a diversidade, né, quer dizer, tem uma música ali, sei lá do carnaval; eu fiz acho que mais ou menos em 2017. Tinha uma mais recente, aí tinha uma mais antiga, então tem várias imagens ali, dependendo da música. “Câmera Analógica”, faixa título também, era antiga, tipo de 2013, um negócio assim… Então já é muito uma colagem, de alguma forma que, claro, uma colagem que daí é sintetizada num disco que soa daquele jeito com a produção que teve, com as pessoas que estavam envolvidas e tudo mais. Agora sobre as imagens que eu tinha durante o processo e depois do lançamento … Acho que foi um pouco aquilo que eu falei antes, que o lançamento teve um lado difícil de estar na pandemia de não poder encontrar. Eu acho que se tivesse sido diferente, se não tivesse sido a pandemia, talvez, as coisas ficassem um pouco mais coloridas, talvez elas ficaram um pouquinho preto e branco na hora que lançou, entendeu? Porque tava todo mundo assim… Meio congelado. Com certeza, se não tivesse tido a pandemia eu teria lançado, feito um show de lançamento em algum lugar, né. Aí eu lancei em 2021, e 2022 também tava esquisito, não tava tendo show, era show de máscara… Quando eu vi, já tinha passado muito tempo. Eu já pus na cabeça que eu só ia fazer show quando eu começasse a tocar o repertório do próximo disco.
Você acha também que por conta da pandemia, a sua visão artística foi também alterada?
Ah, com certeza! Eu acho que, não só a pandemia, mas junto com a pandemia também… Começou a crescer meio que exponencialmente toda a nossa vida digital, né. É uma questão pra todo mundo, com certeza. Se a gente começar a bater esse papo, você também vai ter, vai estar pensando mais ou menos as mesmas coisas que todos nós, artistas ou não artistas. Todo mundo com quem converso, [o papo] acaba caindo em Inteligência Artificial. O assunto Inteligência Artificial, algoritmo… Tanto que a gente está viciado em celular! Eu acho que a pandemia veio meio que num lugar oportuno pra esses bilionários aí que criam essas coisas todas porque eles estão trabalhando pra isso. A gente ainda estava preso em casa, então o nosso uso de celular explodiu, né. Em 2019, eu via filmes sem olhar o celular, hoje em dia, quando eu estou vendo um filme, eu dou uma olhadinha no celular então, isso pra dizer, voltando a sua pergunta, que isso não sei se alterou exatamente o que a gente pensa de arte ou como a gente faz, mas deixou a gente com muitas muitas minhocas na cabeça, sabe? Então tá tá consolidado que o único meio nosso é o Instagram, que o único jeito realmente da gente divulgar o trabalho é aí? Então, bora! Mas essencialmente o jeito de eu fazer música não mudou ainda. Pego meu violão, faço a música - eu ainda não uso inteligência artificial - então, por exemplo, com o lançamento de “Cansaço”, eu até dei uma pinta de produtor de conteúdo, entendeu? Falei assim: “tá bom deixa eu fazer uns videozinho meio engraçado com legendinha aqui, pra chamar atenção” e tem uma coisa interessante - estou desviando um pouco da sua pergunta exatamente - , mas acho que tem a ver que é assim… Em 2021, quando eu lancei o disco, [para os dias de hoje] eu relaxei, eu estou uma outra pessoa. Quando eu lancei o disco, era o meu primeiro disco, as expectativas já são confusas de qualquer jeito, porque é a primeira vez que você tá fazendo, a gente ainda não entendia tão bem as redes sociais quanto a gente entende hoje, a gente achava que entendia, mas não entendia ainda; eu levava muito mais pro pessoal assim, número de ouvidas, quem tá comentando, quem tá compartilhando… Agora, com o lançamento que eu fiz agora, eu tô muito mais frio, no bom sentido. Até achei que o lançamento foi legal pro meu tamanho de artista, mas fiquei muito mais frio, de tipo, aprendi a valorizar muito mais a opinião de quem tá em volta, gente, amigos, colegas, músicos que viram e falam “poxa, que legal”, “gostei e tal”. Então, a gente se liberta um pouco também do trabalho intelectual, quero dizer de saber analisar um pouco as coisas e entender a realidade e perceber que tá tudo bem. O Instagram tá ai, ele venceu por enquanto e tal, mas tudo bem, a gente usa as ferramentas e também fica na paz entendeu?
Como tá sendo fazer esses conteúdos, quando são necessários? Porque agora, hoje em dia, o artista tem que ser também criador de conteúdo, ir atrás, lutar contra os algoritmos etc, e se você não fizer tanto tempo o seu conteúdo não vai aparecer. Como você se sente fazendo isso e ao mesmo tempo indo contra a maré, porque agora, como você diz, você tá um pouquinho mais frio com isso.
Putz, acho que daí até entra nos assuntos do tipo assim “tá, como é que eu vou ganhar dinheiro?” Como artista tá muito, muito, muito difícil, até para artistas um pouco maiores, mas ainda independentes. Amigos meus que lançaram trabalhos recentemente até conseguiram ir melhor em números, de internet e tal, ainda assim a pessoa faz show, tem público. A pessoa pode estar indo muito bem na internet, mas não tem público, então você vai ganhar dinheiro com o que? Com o play que não vai ser, né. Tem que ser muito absurdo, estratosférico pra você ganhar dinheiro, então penso assim: eu vou continuar sendo professor, que é o que me dá dinheiro e tal, e ir fazendo o meu sem encanar muito, acho que é isso, usando os meios porque é lá que a gente divulga nosso mural, né. Porque é foda, a gente é meio que obrigado a produzir o conteúdo, virar produtor de conteúdo. Eu faço o meu videozinho, falo do meu jeitinho, canto uma música aqui e não sei o que, e tá bom pra mim, sabe? Outra coisa que eu tinha muito em 2021 e agora não tenho mais - olha como é louco e perverso esse mundo das redes sociais - eu lembro de me sentir um pouco culpado “eu vou falar de novo sobre esse assunto? as pessoas não querem ouvir falar sobre esse assunto” e na verdade é o contrário: ninguém nem lembra da coisa que você falou. É um oceano de informações que ao fazer um post falando que lançou uma música, é uma gota em um oceano. De fato você tem que fazer [o post] “olha, lancei!” [faz uma caricatura das personas de hoje em dia nas redes sociais] depois de duas semanas falando do assunto… Várias pessoas ouviram - ainda bem! -, mas depois de duas semanas uma pessoa que é meio próxima de você vira e fala “puxa, ouvi e adorei! Depois de ver 5 posts seus” Esse amigo falou “eu via sempre os seus posts e falava “eba, vou ouvir a nova música e já me perdia em outra coisa. Depois da quinta vez que ouvi você falando, fui lá e ouvi” Então, assim, é horrível que a gente tenha que fazer isso e tal, espero que em algum momento, algum trabalho que eu lance eu consiga furar a bolha para não ser só eu, no meu perfil, tendo que fazer as coisas. Mas fiquei tranquilo dessa vez.
A gente falou de tempo e me fez lembrar a música “Anos 80”. Você diz que aquela época te dá um leve suor nas mãos. Esse suor nas mãos ainda continua nos dias de hoje?
Esse suor das mãos especificamente eu lembro muito do momento de fazer o refrão dessa música, tinha acabado de lançar Stranger Things - hoje em dia eu acho que ficou meio bagunçado - e aquela primeira temporada foi muito legal! Deu uma sensação de nostalgia das séries dos anos 80… Lembro que ouvi a música de abertura da série, lembro que me deu uma sensação do tipo “como é que as obras de arte, de ficção, de filme e música, como eram os sonhos da galera dos anos 80 sobre o futuro?” E eram sempre coisas sombrias, era Blade Runner, a ideia de que tudo seria substituído por robô e essa ideia me deu essa imagem de que me dá um leve suor nas mãos, quer dizer, essa coisa meio melancólica, robótica melancólica no sentido dos anos 80. Então, eu consigo ainda acessar esse sentimento, eu entendo o que eu tava falando.
E neste futuro, você acha que seremos substituídos por robôs? Vai ter um Blade Runner 2060?
Cara, acho que até pior! Pensando em Blade Runner, se for aquilo, até que tá melhor. Não sei, agora, eu sinto que a gente tá numa era mais realista, não é nem pessimista, é realista. Nos anos 60 o temor era a bomba atômica - olhando agora em retrospectiva podia acontecer mas não era uma coisa tão iminente assim -, nos anos 80 a coisa ecológica tava começando, então, era um sonho qualquer, meio fantasioso, agora é realidade. O aquecimento global chegou, já mudou e o mundo vai começar mais inóspito… Não acho que o nosso futuro parece bom, mas ser substituído por robô… Meio que já tá acontecendo, não exatamente do jeito que a gente imaginou, mas de alguma forma - e o pior é que a gente nem consegue colocar os robôs para trabalhar pra gente, o que seria bom! [risos] Li Fahrenheit 451, de Ray Bradbury, pouco antes da pandemia - lembro que eu tava na praia - e fiquei chocado. Ele narra as pessoas entrando nas casas e tinha umas telas gigantes que ficavam passando umas imagens para anestesiar as pessoas. Tinha um quê de que no futuro as pessoas seriam anestesiadas, elas ficariam olhando imagens na parede e acho que essa [imagem] aí, ele acertou demais.
Já em “Urge-se” você relembra que o grito é urgente, assim como estar aflito. Essas estrofes combinam com o que vivemos no passado, mas também conversa com os dias de hoje. Você ainda segue aflito e gritando?
Cara, muito legal você lembrar dessa música, é uma das que eu gosto do disco. Essa é uma que eu tocaria ao vivo! [olha para o lado e recita a música, lembrando a letra completa] Acho que a ideia que tava em mim quando eu fiz essa letra é uma… Bom gancho que você fez, essa coisa de anestesia, das pessoas estarem no celular o tempo inteiro para não pensar, acho que essa era a ideia da canção, quer dizer, é urgente estar aflito, é urgente a gente se tocar com os assuntos em vez de não pensar neles, né? Acho que a gente tem que se provocar porque, sei lá, é igual aquele estudo que saiu recentemente: enquanto houver internet e ar-condicionado nada vai mudar, né? Sem querer aquela ideia de culpar o consumidor, não é isso, mas a gente tem que botar aflito. Se você não tá sentindo nada aí é um problema. Acho que essa canção fala muito sobre isso, sobre é necessário estar aflito.
Estar em alerta, né?
Ou incomodado mesmo, porque o conforto paralisa, né? Tem um verso que fala “quem pode dizer que a felicidade é só o encontro com o prazer? Sei que bem mais além ela é um sonho que sempre sou refém” - é um pouco isso.
Se estamos sempre buscando por algo, o que você procura na área musical?
Recentemente uma amiga minha falou assim: “onde você se enxerga daqui dez anos?” Que pergunta é essa? Eu sou uma pessoa um pouco planejada, eu não traço coisas para [imaginar] onde estarei daqui dez anos, vou caminhando e é isso. A verdade é, até falei isso para uns amigos esses dias, na idade que eu tô, eu já não tenho a pretensão de ficar famoso, não é isso mesmo! Se eu faço uma coisa é porque tenho que fazer, entende? É uma obrigação espiritual, digamos assim. O que eu quero é viabilizar o meu trabalho, que me deixe satisfeito e também, poxa, conseguir fazer um showzinho ou outro, né? Musicalmente, isso é uma coisa mais recente, da pandemia pra cá, comecei a ter mais vontade de trabalhar como músico, além do trabalho autoral, inventei uma banda de forró com uns amigos que tá indo bem e isso me mantém ativo como músico e cantor.
É muito curioso ouvir que você tem uma banda de forró porque, assim como o carnaval, esse gênero musical é festivo, muito trabalhado em datas comemorativas. Por que isso acontece, é um ciclo repetitivo?
Nossa, eu não sei, mas é claro que eu percebo isso - e também não foi uma coisa não planejada da vida, porque não é como se desde criança eu fosse apaixonado por carnaval ou festa junina, são coisas que eu sabia por ser brasileiro e tal, mas quando eu vi, eu era um cara muito do carnaval. E aí, agora, quando eu me dei conta, também tenho uma banda de forró… Tem um amigo meu que eu gosto muito, que é músico também, o Yuri, ele sempre faz o mesmo comentário: “eu acho bonita a sua relação com a música porque tem muito a ver com momentos de festas. Você tem muito isso, levar a música para festa” e eu querendo ser um cara sério [faz cara de sério, ri] Não foi planejado. Comemorar o são joão, o carnaval… Daqui a pouco eu vou ter que fazer uma banda natalina.
Aproveitando que você falou bastante sobre movimento, me lembrei da sua canção “Estrada”. Acho que é a música mais reflexiva do álbum. Essa estrada continua sendo a mesma, aquela que te levou para outros lugares, ou ela foi para outros caminhos?
Para trás é a mesma, né, é a que já foi… Pra frente eu não sei qual que é, mas de alguma forma é sempre a mesma, né? Só se for igual aquele filme O Brilho Eterno de uma Mente Sem Lembranças, aí nesse caso, eu acho que a pessoa não tem a mesma estrada. Se não for isso, eu acho que a estrada é sempre a mesma, apesar de que a gente sempre ressignifica as coisas.
Te dá medo seguir essa estrada?
Agora, neste momento, não [risos]. Às vezes pode ser que dê mesmo, mas neste momento, eu tô tranquilo.
Assim como o dia a dia, celebrações cansam. Dependendo do local, é possível que esse cansaço torne-se uma nuvem cinzenta, imitando áurea paulistana, onde a população está esgotada. Nesse sentido, André Mourão apresenta o duplo "Cansaço/So Tired". "Cansaço" é uma canção de Zécarlos Ribeiro e foi lançada em 1981 no clássico álbum de estreia do Grupo Rumo.
Sobre o processo de construção da nova versão, André conta que propôs a Zécarlos uma revisita à obra, primeiro em relação ao arranjo, e ele trouxe na jogada o experiente produtor e músico Márcio Nigro, que criou um elegante arranjo em seu estúdio Buraco Nigro. Somando a faixa, Márcio convidou Luciano Vieira para gravar o contrabaixo fretless e Adair Torres, músico de referência no Brasil quando o assunto é pedal steel, instrumento típico da sonoridade folk/country.
Agora sim falamos sobre “Cansaço/So Tired”, com uma nova roupagem e um toque autoral seu. O que te levou a gravar essa música? De alguma maneira, você quis homenagear Zécarlos Ribeiro?
Essa música sempre me perseguiu! Eu ouvia essa música e falava “essa letra é muito foda” Cansaço, esse sentimento infinito… Pra mim dizia muito sobre… Esse lado que tá pintando muito no nosso papo, sobre o sentido do mundo, essas canções que pensam sobre o mundo, né. Então voltamos para o assunto. Essa música tem o cansaço, de novo, dos tempos modernos, dos tempos contemporâneos, onde a gente se sente cansado, sem tá cansado, é um cansaço que também vem do capitalismo e do conforto, um cansaço meio burguês - tanto que uma das inspirações do Zécarlos foi a música do John Lennon para o álbum branco dos Beatles, I’m so Tired, mas a história é que eu sempre gostei muito dela, de vez em quando, ao longo desses anos, eu mostrava para alguém e falava “olha essa música aqui!” e a pessoa falava “nossa, que letra doida, né?!” Aí ano passado peguei o violão e toquei ela, vou tocar de algum jeito - porque é tudo meio esquisito a versão original - já comecei a tentar achar outro jeito de tocar a música, já querendo, na minha cabeça, arrumar um arranjo um pouco mais pop para ela, pop no sentido de mais fácil, mais fluída do que o arranjo do Rumo. Fiz uma levada básica que me lembrava Bob Dylan um pouco e virei para o Zécarlos Ribeiro, que é o compositor da música - o Zé tá em um momento muito interessante, porque quando tava no Rumo, ele era o que mais compunha, assim como o Luiz Tatit, só que ele, ao contrário do Luiz, não seguiu uma carreira logo depois do Rumo, ele nem músico é, ele é arquiteto, e ele nunca mais lançou nada. Agora, quando ele tá com 70 anos, ele começou a lançar as coisas dele sem pretensão nenhuma -, e mandei uma demo cantando e ele respondeu com “adorei! Vamos gravar com outro arranjo?” Ele já tava trabalhando as músicas dele com o produtor Márcio Nigro, então ele já tava com estúdio pronto com o Márcio e falou “entra aí, vamos começar porque estamos com tudo engatilhado” Aí o Márcio, eu não o conhecia, chegou com… O Zé me mandou a música já arranjada, uma base da música já arranjada. Basicamente aquele arranjo que você ouve, teve algumas alterações que a gente fez e tal, o cara quase fez tudo sozinho em casa. Aí eu gravei a voz. Ele fez um arranjo - foi uma sugestão minha fazer o arranjo folk, só que eu só dei essa ideia e ele pá! levantou esse arranjo inteiro. Com o arranjo pronto, gravei voz da minha casa mesmo e aí ele chamou mais dois outros músicos para gravar e a música tava pronta. Nesse meio tempo em que o Márcio tá criando o arranjo, o Zé tá me contando as influências que o ajudaram a compor a música, que foi John Lennon e João Gilberto, eu falei “vou fazer uma música em inglês” e fiz! Aí a gente resolveu gravar as duas versões, com a mesma base, o mesmo instrumental, mas em inglês. Fiquei pensando… É como se fosse aqueles compactos antigos [pega um na estante e mostra, explicando a ideia] de um lado tinha uma música e do outro lado tinha outra música. Então, eu pensei esse single assim: de um lado a versão em português, do outro lado, a versão inglês.
Como você se sente agora que a música está no mundo e que as pessoas estão te ouvindo em outro momento, pós-pandemia?
Cara, eu tô adorando! Falei isso nas redes, tô adorando os retornos, as pessoas falando sobre a música. Eu vejo pessoas ficando tocadas igual eu fiquei com a canção; também vejo as pessoas falando “essa canção realmente é tocante” e era isso que eu queria. Eu amo essa música e acho que eu devia, era como se eu tivesse uma dívida com essa música, eu queria fazê-la. Outra coisa que me ocorreu também, já passamos sobre esse assunto, existe uma certa dualidade em mim: uma coisa festa e outra coisa séria… Eu vou contar pra você em primeira mão, Michele, mas [“Cansaço”] terá um clipe e já está pronto. O meu outro único clipe é de “Olho no Olho”, uma marchinha que foi lançada durante o não carnaval na pandemia, é um clipe com muita gente na rua, enquanto esse clipe de “Cansaço” é o oposto: eu andando pelas ruas. Eu não me preocupo tanto, mas depois de três anos, volto com uma música que [se chama] “Cansaço”. Tem uma história muito boa que a tia da Ana Paula, minha companheira, me escreveu assim: “querido, adorei a música, mas não desiste não, viu? Você é maravilhoso” [risos] Eu dei tanta risada, porque é aquela velha história, como estou cantando é a minha verdade, quer dizer, eu estou cansado, eu não consigo mais seguir - é muito curioso, porque muita gente ouve e aquele que canta passa uma verdade e foi até bom que ela tenha achado isso, porque o canto teve uma interpretação boa.
E hoje, você tá cansado?
Sim e não. Eu me identifico bastante com a letra da música, acho muito bonito o final [“Agora estou vazio, / Sem palavras, sem imagens / Felicidade me abrace, bem forte / Eu tenho certeza que um sofrimento novo vem / E não é cansaço / Não é não”] que é esperançoso, por assim dizer, mas eu tenho que lutar contra o cansaço.
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