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Foto do escritorMichele Costa

As guerras de Flora Miguel

Em Um Teto Todo Seu, Virginia Woolf diz que as mulheres precisam ter o próprio espaço para que possam escrever. Vale lembrar que essa ideia vai além de um local: o teto também é o próprio corpo, afinal, é ele que dá a estrutura para iniciar um novo trabalho. Através de sua sustentação - formada por ossos, pele, músculos, tecidos, nervos, órgãos e sentimentos, como uma casa - Flora Miguel observa o mundo para transformá-lo em poesia. Passeando por corpos de diferentes posições sociais, a jornalista e poeta entra em guerras para denunciar o patriarcado e o capitalismo, além de nos relembrar a importância de enxergar a beleza nos pequenos atos do cotidiano. 


Em sua casa (termo aplicado para ambos sentidos citados acima), inicio a conversa com Flora. O diálogo é marcado por uma das diversas violências que a mulher passa diariamente (em um determinado momento me questiono se um dia conseguiremos viver tranquilamente, sem o rastro do machismo da misoginia). Esse start me lembra Ira (Primata, 2022), projeto escrito por Flora, Camila Martins e Priscila Kerche, lançado pela Editora Primata em formato de plaquete. A partir da citação do filósofo sul-coreano Byung-Chul Han, no livro A Sociedade do Cansaço (Vozes, 2015), acerca da ira, as autoras trouxeram para os poemas a indignação com o próprio tempo marcado pela violência do patriarcado. "Inclusive, está muito evidente, sobretudo nos meus primeiros trabalhos, essa poética mais de denúncia. A gente já chega conversando sobre isso porque são violências que nos atravessam o tempo todo", reflete. 


Segundo o historiador John Baines, a primeira guerra da história aconteceu em 2525 a.C, na fronteira contra Umma, outra cidade-estado da Suméria. As guerras causadas por homens são registradas, diferente das mulheres. É necessário relembrar que nossos conflitos começam assim que tornamos mulheres. Para existir, lutamos bravamente e mesmo com os machucados não desistimos. "A guerra não é um lugar de escolha, é um lugar de defesa", Flora me relembra.


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Em que momento - se existiu esse momento - você descobriu que era possível fazer poesia através do jornalismo e/ou através das visões que você tinha? 

[solta uma leve risada] Deixa eu pensar um pouquinho. Eu acho que o meu primeiro livro já veio um pouco, naturalmente, nesse caminho porque é isso, a gente falava há pouco sobre violência, no qual eu digo: estou falando com essas pessoas, buscando dialogar e me colocar, porque tem algumas vias da gente falar sobre o que incomoda e traumatiza - e uma delas é a literatura. Dá pra gente fazer, enfim, política, ir para as cabeças, pensar em políticas públicas, dá pra gente falar botando na palavra, cara a cara em um processo de psicanálise e escrever, pra mim, é uma dessas vias. Então um pouco, veio da necessidade pessoal e não de uma metodologia em encontrar caminhos possíveis pra falar sobre esse corpo que é atravessado por violências sistêmicas e sistemáticas. Então, o primeiro livro nasce com essa carga, muito por ser o primeiro! E é recorrente em obras de mulheres, vejo muito isso nas contemporâneas e falo muito sobre isso com amigas e colegas da poesia, que nossas primeiras obras tem essa temática do corpo, porque são corpos que foram e seguem sendo - no projeto operandi de mundo - silenciados. Então quando se permitem e tendo os meios necessários para se expressar na poesia, já que estamos falando de poesia, me parece razoável que os primeiros passos sejam desilenciar esse corpo. Em Tempo Sem Cruz (Primata, 2022) e Ira, eu brinco um pouco com esse trabalho mais jornalístico de trazer dados, mas se não fosse isso, ainda teriam esses corpos violentados. 

Não é doloroso falar sobre esses corpos? 

Foi, foi doloroso. Tem Sem Cruz tem até algo da pesquisa, o poema que dá nome ao livro tem dados do Censo, dados de mulheres que morreram vítimas de aborto ilegal, então, é claro que é muito doloroso. Não é uma realidade que eu entrei em contato para escrever, ela já me afetava e ganhou certo direcionamento. Antes de lançá-lo, assim como Ira, me deu a sensação de "uou, isso pode ser pesado para as pessoas", mas… Mais uma vez, a criação artística, ficcional, sobretudo nesses primeiros trabalhos meus, tava muito mais na forma de fazer do que no conteúdo… Então, se assustar alguém é porque o nosso entorno é muito assustador mesmo. 

Até queria falar com você sobre esse assustador, porque "Bandeiras" me pegou muito, me trazendo uma memória totalmente recalcada. No momento em que você escreve sobre aqueles lençóis com sangue, me veio uma memória de infância, talvez causada pela novela O Clone, onde os homens colocam nos varais aqueles lençóis que mostravam a virilidade masculina. Lembro de, na infância, chorar e falar para minha mãe que não queria que aquilo acontecesse comigo quando crescesse. Queria saber de você: no momento em que você escreve, você pensa em algo específico? E como você se sente ao saber que seu poema pode ser interpretado de outra maneira? Você acha que todas as interpretações são válidas para um debate? 

Eu gosto demais dessa ideia de que meus poemas tenham algo de aberto mesmo, de inconcluso mesmo, para quem entrar em contato com eles possa sentir maneiras diferentes ainda que a narrativa seja uma e daí eu volto um pouco para poesia - a poesia permite que é esse deslocamento simbólico da palavra, né? A palavra bandeiras tá ali e ela pode ser assimilada como um símbolo de guerra, como um símbolo de luta e reivindicação, então, ter essa abertura em poder jogar com repertório simbólico também de cada pessoa é muito interessante pra mim. Esse poema… É muito louco os caminhos que ele foi tomando, as mulheres se conectam muito com ele, os homens gostam muito dele também porque também fala com essa masculinidade, trazer essa ideia da Grécia e de ser o maior mistério de que as mulheres podem sangrar por dias sem morrer, algo que nesse imaginário pelico dos homens guerreiros, seria impossível porque ali se sangra e morre, se mata e morre, e essas mulheres sangram e vivem e estendem o lençol ali e pode ser visto como essas bandeiras de resistência. Acho que justamente essa abertura pra interpretações que ele dá que chamou tanta atenção… Tô quase certa que é o poema que mais me chamaram para ler em voz alta e mais instagramável também por ser esse jogo e pela escolha de palavras que é muito o ofício da poesia: escolher as palavras para potencializar o significado delas. 

Falando em palavras, você usa a palavra guerra, se não me engano, duas vezes em poemas diferentes. Podemos usá-la no sentido literal, mas muitas pessoas não vão conseguir compreender a guerra que as mulheres vivem. O que te fez usá-la, porque você poderia usar um sinônimo, talvez confronto, e como foi trazer os diferentes tipos de guerra ao fazer a crítica e a denúncia ao patriarcado?

Eu te diria que é muito por aí com o que você trouxe… A guerra, a rigor, é dos homens, mas eu não consigo te dizer que nós não estamos em guerra - é assim que eu sinto [a partir da] minha experiência de vida. Trazer a palavra guerra me parece que traz muito - e é lindo pra mim você falar isso porque faz parte da minha intenção - esse contraponto com essa imagem bem mais palpável da guerra, homens com armas de fogo, e uma guerra simbólica, mas não menos atroz, não menos violenta, não menos letal.


Falando em corpos, principalmente em Tempo Sem Cruz, você não trabalha apenas no corpo feminino, você traz corpos que estão invisíveis. Além de suas vivências, o que te levou a trabalhar com esses diferentes corpos e como foi dar voz a outras pessoas? 

Isso de dar voz a outras pessoas [breve silêncio] é um trabalho delicado. Pra mim foi importante entender - eu não tô falando por ninguém, eu tô observando pra além de mim e traduzindo, à minha maneira, essas observações. Me ajuda no processo de observar, ter outras vozes no poema que não sejam essa protagonista. No mais, são corpos que eu vejo há todo momento, eu não tenho como não enxergá-los… Também acho que é um processo, também acho que é uma prática consciente, aquela coisa de não ter a opção de desver. Uma vez enxergado, e daí essa questão da palavra, ver alguém e enxergar alguém, pra mim, são coisas um tanto indiferentes. Ouvir alguém e escutar alguém também. A gente pode ver, esbarrar ou passar por tanta gente que tá por aí, até ouvir quando falam "bom dia" ou "toma seu troco" são outras camadas dessas relações. Então, são corpos que eu enxergo e escuto o tempo todo e, talvez, diante de como não desver e desouvir eu tenha colocado na minha construção poética. 

Você gosta do que observa ou, se pudesse, mudaria para ver outras coisas? 

Eu acho que eu gosto de como eu observo do que não necessariamente… Em Ira eu tenho um poema muito direto a partir da observação de uma criança que tá em situação de rua, não seria a minha visão de escolha, mas eu gosto de como eu escolho enxergar. Tem um poetaço chamado Dirceu Villa, que me deu aula na Casa das Rosas e foi super importante pra minha formação, que me disse, uma vez, que eu enxergava sombra no sol do meio-dia. Pode ser meio darkzeira - será que eu só vejo horror? - mas, na verdade, é a maneira de ver o que tá diante dos nossos olhos, né? Se pegar o meu último lançamento, Casa de Praia (Primata, 2024) já são outras coisas que eu tô observando. Tô observando a natureza, o amor, a passagem do tempo, os astros, a água, o fluxo da água… Quer dizer, tá tudo aí! Me interessa é a maneira de como observo e de como eu brinco em traduzir essas observações. Não dá para esquecer o que eu tô fazendo - claro, gosto de estudar, tem metodologias - é uma brincadeira também [porque] a poesia é uma brincadeira com as palavras, como é um experimento que não tem necessariamente um porquê e acho que isso tem tudo a ver com eu ter deixado um pouquinho de lado essa temática mais de denúncia e partido agora para um trabalho muito mais contemplativo e reflexivo para também poder brincar com um pouco mais de leveza, porque esses últimos anos de jornada poética tem me ensinado essa sábia lição de não me levar tão a sério com o que eu tô propondo a fazer.  

Essas observações continuam iguais ou você sentiu que elas foram modificadas para outros viés pós-pandemia? 

[silêncio] Tô muito segura que sim, tô tentando entender um pouco qual seria esse caminho… Tem algo desse - podemos chamar agora, aqui e agora só, não é um termo para ser levado adiante - espírito de poeta que já me tendenciava a observar a beleza da sombra da planta, a magia cotidiana; e a questão da luz e sombra que eu acho tá muito presente na poesia assim como tá presente no cinema, né? A pandemia me atirou muito severamente à realidade material, dos fatos a atrocidade da existência, sobretudo como a gente viveu ela no país, né? Vivemos um genocídio a todo momento lidar com a morte… Foi muito severo pra todo mundo, né? Perder tanto, tanto, tanto como é o jeito de ver o mundo me deixou muito mais crítica ao mundo [breve pausa] e acho que conecta um pouco com a ideia do que o Dirceu disse. Sim, me fez olhar para o mundo com uma experiência muito mais crítica à ele e tem muito esse reflexo em Tempo Sem Cruz e Ira. Em Casa de Praia isso tá refletido de outra maneira, porque passado um tempo da experiência atroz coletiva, lidei muito intimamente com a matéria e a simbologia da morte em torno dos anos pandêmicos. Agora, passados os anos, Casa de Praia me partiu muito do desejo de experimentar, observar outras coisas com esse olhar relativamente recém adquirido, mas critico das coisas, com uma memória ativa - tanto que ele tem um poema chamado "Memória" que parte da observação [ruído na gravação], mas 700 mil cadáveres no pensamento. Tá aqui! Me marcou, me atravessou e coexiste com a beleza do céu e do sol descendo na água. É mais ou menos esse jogo que também é o jogo da vida. A própria vida: se a gente conseguir coexistir diante da beleza e do horror, encontrar alguma coisa ali que possa fazer alguém sentir e se conectar, foi, sabe? Sinto que foi um lindo passo dado. 

Em "Contrapartida" você fala do pôr-do-sol e acho muito bonito que no meio do livro, um livro porrada, você traz a imagem de uma calmaria, porque a vida é uma guerra. Imita as oscilações da vida. 

Muito interessante, você me trouxe uma coisa que eu não tinha pensado. Como é bom poder trocar e como falta esse espaço de troca. "Contrapartida" funciona, claramente, como um respiro no meio de tudo que tá sendo trazido naqueles poemas. Ele começa desse horror, notícias terrivelmente sérias e termina na leveza da observação do pôr-do-sol. Assim como em Casa de Praia, "Memória" é um respiro às avessas porque você tá contemplando, contemplando e o poema "Memória" chega contemplando o céu e termina no nosso número notificado de mortes durante a pandemia. Então, esses respiros, seja o mais afobado ou o mais relaxante, funcionam sim como esses espaços de contraposto para entender esses trabalhos como narrações cheias de nuances. 


"Pra mim, o grande jogo da poesia é trazer a imagem e as ideias em torno da imagem. Você traz as ideias no entorno da palavra e aí o leitor e a leitora vão construindo esse pensamento mais linear que parte do mundo, que parte do que ela comunga do mundo com aquilo que ela tá lendo. Em algum momento a poesia dá um saltozinho e desloca o pensamento e com alguma sorte movimenta ligeiramente esse mundo que existe e que pode ser expandido."

Em "Formiga" você reinventa a história de Luana, dando um final digno à uma mulher que foi assassinada pela polícia. Fiquei pensando: será que ressignificar perdas brutais, alivia a ira que carregamos? 

Eu vejo como um caminho possível. Pra mim foi muito importante ter construído esse poema a partir da morte da Luana, ela foi minha amiga, minha irmã, nós nascemos e crescemos juntas e foi uma morte muito brutal de uma mulher jovem assassinada à queima roupa por um policial militar. Claro, me atingiu muito pessoalmente, assim como atingiu outras pessoas, porque a Luana era palhaça de circo… [No] pós-morte eu fui descobrindo como ela era conectada com artistas do país todo… Esse fim de semana também, olha as conversas de doidões, conversava com um amigo sobre a morte, "o que você gostaria que fosse feito com o seu corpo e celebração?" e eu lembrei do velório da Luana que ressignificou a morte dela de uma maneira muito potente, nós somos conterrâneas, ela foi enterrada no Velório Intermunicipal de Rancharia, que é a nossa cidade, com aquela coisa formal, o corpo sendo velado… Um grupo de circense com que ela atuou foi e fez uma palhaçaria [abre um leve sorriso] e virou uma festa! Foi uma ressignificação muito poderosa da morte dela e esse poema, pra mim, ressignifica a morte dela e traz essa possibilidade, da literatura, da arte, da poesia, de imaginar mundos possíveis a partir do nosso. Esse poema, quando apresentado para a família dela, foi muito bem acolhido e abraçado, foi um processo lindo porque virou nosso. 


Quando você me mandou os pdfs, eu tenho uma mania ridícula em conferir as páginas. Vou passando os dedos na tela do celular para ver se está tudo certo. Quando fui fazer esse processo, meu dedo parou em "Sec. 21" onde você diz: "escrever/ não tingindo mãos/ mas inflamando dedos". Depois de ler "Formiga" fiquei me perguntando se os seus dedos estão inflamados. Como eles e você estão? 

[risos] Poderia te dizer que meus dedos estão menos inflamados quando escrevi "Sec. 21"... Melhor: acho que estou com os dedos tingidos e inflamados [risos]


flora miguel
(Créditos: Benjamin Bruyère)

Falemos de Casa de Praia. Essa casa existe ou ela é fictícia? 

Ela existe no campo das ideias [risos]. Pra mim acaba sendo mais maravilhoso do que ela existisse - tô brincando! Eu adoraria ter uma casinha de praia pra descer toda semana [risos]. Ela não existe, é uma ideia, um lugar inventado. Ela foi fundamental para construção desse trabalho porque foi a partir desse lugar que eu entendi sobre o que eu queria falar agora e como eu ia ocupar esse lugar com personagens e com situações e imagens. No ano passado, eu tive uma vivência muito transformadora de contato mais próxima e intensivo com a grandiosidade da natureza, foi um ano que se conecta com tudo que a gente tava falando, o que vem depois de tanto que a gente perdeu naquele período pandêmico, nos quatro anos de governo Bolsonaro… No pós-pandemia, comecei a organizar um movimento mais intensivo que era: decidi sair da cidade de São Paulo por um ano, segui trabalhando - sou basicamente uma trabalhadora online -, para experimentar estar em movimento. Não ter uma casa fixa, não ter um contrato longo. Foram 12 meses, 12 casas, diversas cidades, muitas experiências, muitas situações e em algumas delas contendo esse maravilhamento do contato com a natureza permitiu. Eu fiquei um tempo em Pirenópolis que é uma região com cachoeiras e pedras imensas, estive no Rio de Janeiro, estive em um contexto urbano também… Quer dizer, a Casa de Praia não é exatamente uma praia, mas ela é um pouco do que sobrou dessa minha andança que era um estado de transitoriedade. Essa experiência de transitoriedade me fez chegar a essa ideia de casa de praia, um lugar onde você se demora sim, mas por um tempo… Dada essa transitoriedade é possível enxergar as coisas dentro de uma nova perspectiva. Tudo é relativizado quando a gente tá nesse lugar mais transitório: os amores são gigantescos, ninguém tem medo do que o outro vai sentir, as experiências têm outra magnitude, as tretas ficam diminutas porque tudo vai passar e a hora que você pensa que isso, na verdade, é a nossa experiência de vida, um pouco mais larga do que umas férias de verão, mas uma experiência completamente transitória, dá pra olhar com essa nova perspectiva para as coisas - e é justamente isso que essa hipotética casa de praia me impulsionou a fazer: observar as coisas a partir de outro tempo, não necessariamente esse linear cronológico, mas o tempo da absorção da experiência e pensar sobre tudo de uma maneira mais ampla e não tão apegada ao fato em si. Tanto que Casa de Praia tem imagens, muitas vezes simples, corriqueiras, mas, pelo menos pra mim, no processo de concepção delas, todas elas trazem reflexões muito maiores do que parece pela primeira vista - nada é só o que parece ali, as coisas estão e são relacionadas a algo e logo não estarão a mesma maneira… Então, ela traz muito disso, da observação, da sensação e da reflexão, por isso essa ideia de casa de praia: onde a gente pode partir um pouquinho mais pro sensorial e a partir daí, enxergando.


No poema "Tempo" você mostra que o tempo não é apenas um estado, ele também está presente nos móveis que estão desgastados.  O que é o tempo para você e como você lida ao ver essas pequenas rachaduras e modificações em você e nos seus utensílios? 

Casa de Praia traz essa questão do tempo mais de uma vez - é algo, claro, que tem tudo a ver com esse meu momento de vida: ser uma mulher cada vez mais próxima dos seus 40 anos, uma mulher que está envelhecendo, acompanhando a passagem do tempo agora de uma maneira mais palpável, essa ideia mesmo, da gente ver a ação do tempo na mesa pelos vincos dela eu consigo enxergar isso em mim. E se até algum tempo atrás esse tempo me parecia mais abstrato, hoje ele tá muito nítido pra mim e tá me botando pra refletir bastante, porque eu também acho que há certo grau de escolha em entender como nós e esse tempo vão nos atravessando. E pensando em ser mulher ainda… Tão socialmente impelida a acreditar que o seu brilho, a sua qualidade ou felicidade ou prazer tenham uma vida útil curta porque uma mulher velha é uma mulher indesejada, amargurada [diz as palavras fazendo algumas expressões faciais], uma série de estigmas muito bem construídos… Observar com mais atenção o tempo nesse momento, pra mim, tá sendo muito importante pra buscar maneiras para que essa relação seja próspera, não quero me sentir apagada e nem aniquilada… Me sinto bastante impelida a pensar sobre o tempo, como me senti muito impelida se eu queria gestar uma criança ou não e como eu tenho pensado agora se eu quero lidar com o meu tempo cronológico enquanto o meu corpo tá envelhecendo e tenho buscado bravamente abrir espaços nesse tempo cronos para experimentar outras temporalidades possíveis, como lidar o corpo e etc… Então, quando o tempo aparece na mesa [para um pouco] e essa imagem, do qualquer tipo "na distração / praga braba" é para dizer que há maneiras e maneiras de encarar esse tempo, né? Alguém poderia olhar para essa mesa e falar: "ih, tá com praga!" "é bicho" "do nada ficou assim?" quando não é do nada, né? [risos] É a reação do tempo invisível e cuidadosa. Ali em "Sapiência" o poema começa com: "aprender com a floresta com as rugas / das cascas" isso tudo partiu do jogo de observar o entorno, me observado também. 


Ir pra guerra já é difícil, mas ir à guerra com palavras me soa muito mais doloroso. 

É difícil, literatura é difícil, escrever poesia eu acho difícil, não acho fácil e me demanda muito mais do que escrever um release sobre um lançamento de um disco ou um roteiro para o quadro que eu tenho na rádio… Ainda assim eu não poderia dizer que os dois são fáceis porque é difícil organizar em palavras o que se pretende, mas eu acho um tesão! Não acho que eu conseguiria sentir maior prazer em outra coisa. 

Nasce ou torna-se poeta? 

[longo silêncio] Eu diria que pra mim torna-se tudo [risos]. Torna-se poeta [repete a frase baixo]. Sem muita certeza, vou ficar com o torna-se poeta. Ainda que se nasça poeta para ser um poeta importante é outra coisa, né? Porque aí é tornar-se o tempo todo. 



"contrapartida


rajadas de ideias pixeladas

notícias terrivelmente

sérias

hoje vamos

apenas ver o sol

escorregar"



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