São Paulo e Ubatuba, biologia e arte, vivências e sentimentos. Essas são as principais características de CACO/CONCHA, formada pelos primos André e Felipe Nunes. Mesclando a energia de dois locais diferentes, o projeto explora a dualidade entre o concreto e a maresia. Entre guitarras, sintetizadores analógicos e timbres modernos, a dupla trilha uma viagem que passeia por diversos períodos.
Após o lançamento de "CASSIS/CONCHA", primeiro single, a dupla lançou o primeiro álbum sob o nome do projeto. Inclusive, a vibe do duo começa na capa, assinada pelo ilustrador Kenji Lambert, que simboliza o conceito dualista do projeto, misturando a beleza das conchas e o perigo de seus cacos (presente na cidade e no litoral) que ficam espalhados na areia decorando a praia. Percebe-se que cada detalhe adicionado no disco foi escolhido com muito cuidado, visando entregar a ideia completa ao ouvinte.
Com inspirações que vão desde David Bowie e Yellow Magic Orchestra até Chico Science & Nação Zumbi e Gilberto Gil, CACO/CONCHA acessa sensações existentes (e inexistentes) de cada um que os ouve.
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Em que momento vocês perceberam que gostariam de transformar suas vivências, gostos e profissões em música? Aliás, foi necessário levar um tempo para amadurecer e, consequentemente, desenvolver a ideia?
Incorporar esses aspectos da vida na concepção artística foi um processo intrínseco, espontâneo. Foi acontecendo conforme o projeto ganhava contornos e fomos desenvolvendo e entendendo o conceito para além da sonoridade. Alguns dos paralelos com a nossa vivência pessoal são intencionais, mas tem muitos acidentais também que fomos descobrindo com o tempo. A gente costumava ouvir música na laje, batendo papo, percebendo as qualidades que tornavam aquelas músicas que a gente gostava distintas. Fazendo isso com uma certa regularidade, resolvemos começar a gravar no celular umas jams de bateria e baixo (bem rústicas mesmo) nas quais tentávamos acessar esses elementos musicais interessantes, as dinâmicas e sonoridades que nos chamavam atenção. Quando pusemos a mão em uma DAW, a coisa engatou completamente, porque aí era o mundo mágico da experimentação sobreposta de loops, e nossas limitações físicas como dupla, pra executar tudo que tínhamos na cabeça, deixaram de existir. Começamos a organizar as experimentações mais sólidas, com ideias melhores, e acabamos com um pacote de demos que precisava de um destino. Até então, não havia um objetivo concreto na confecção daquelas músicas, eram sínteses de um primeiro período de experimentação. Foi nesse momento que decidimos ir atrás de um produtor (Daniel Soares), dar tudo na mão dele e ver o que acontecia. Pode-se dizer que o CACO/CONCHA como ideia surgiu na laje, de uma perspectiva que criamos juntos sobre música, mas como banda começou quando realmente fomos amarrar as demos para a produção do disco. Dali pra frente, a conversa se aprofundou bastante entre a gente pra desenvolver a parte conceitual do som - as letras, as referências, os timbres, as intenções, etc. Desse ponto até lançarmos o disco foram quase quatro anos. Então sim, muita coisa amadureceu no caminho, foi um processo lento e meticuloso, que nem esculpir um grande monólito de pedra. Aquelas primeiras demos eram uma salada caótica, mas todas as ideias estavam ali desde o começo. No final, acabamos com o disco que tínhamos na cabeça nas nossas mãos, e isso é muito valioso.
Como surgiu o nome? Existe alguma história por trás?
O nome apareceu naturalmente, baseado em duas coisas - a ideia dos fragmentos cortantes das conchas presentes na areia da praia, sedimentos do tempo em um lugar acolhedor que pode ser inóspito e perfurante. Essa imagem da caminhada na orla, na aurora/crepúsculo, onde dia e noite se misturam assim como a areia de agora e a areia de ontem, que calcificam as conchas.
A ideia de ter um jogo fonético também foi um estalo feliz da nossa parte, onde o movimento da boca na pronúncia (Ca - Co - Con - Cha) alterna entre o aberto e o fechado, e ao mesmo tempo remete a brasilidade das palavras herdadas da cultura indígena/africana, centralizada nas vogais. É engraçado que por nós nos configurarmos como dupla, sempre nos questionam “quem é Caco e quem é Concha?” e achamos isso divertido, porque além de sermos ambos, esse nome tem uma presença de um artista imaginário (brincávamos muito que poderíamos montar uma banda auxiliar para nos acompanhar nos moldes dos artistas dos anos 50, como Bill Halley & Os Cometas - nessa realidade, o Caco Concha parece um cantor de música praiana preso nos vinis armazenados nos armários do tempo.
CACO/CONCHA surgiu da energia urbana de São Paulo com a tranquilidade do litoral. Como foi misturar esses dois mundos que são diferentes, mas se dialogam?
Essa mistura sempre se deu da forma mais natural possível, até involuntária. Somos parentes pelo lado Nunes - o pai do André e a mãe do Felipe são irmãos - que foi para Ubatuba nos anos 70 logo no começo da ditadura militar. Nosso avô foi presidente do conselho de odontologia da USP no começo do regime e, com os primeiros indícios de perseguições e correspondências abertas, migrou para o litoral para recomeçar a vida com cinco filhos. Essa família sempre esteve lá e aqui, quando os filhos se formaram na capital e retornaram à praia; e depois na geração dos netos, a nossa, isso já estava mais estabelecido - Felipe nasceu e morou em Ubatuba até os 18 anos e veio para a capital estudar, enquanto André nasceu e cresceu em São Paulo e ia sazonalmente ver a família na praia. Com o passar dos anos e a troca de experiências, vamos percebendo a força magnética desses dois pólos, que sempre atraem esse oposto - a praia, e o mar, o clima litorâneo que desacelera e te obriga a respirar diferente; e a agitação constante da metrópole, hiper congestionada de eventos e pessoas, que nos colocam em um movimento inimaginável.
Existe uma angústia presente nesses dois cenários, a de se expandir e poder desbravar um novo mundo inóspito; e a de poder se conectar com o natural, se sentir humano de novo em uma realidade tão pulsante da cidade. A intersecção é bonita de se pensar, uma vez que é impossível ser um ou outro ou se estar satisfeito por muito tempo com só uma das realidades.
Além da mistura dos dois espaços diferentes, vocês também trazem a biologia e a arte, suas profissões, para as músicas. Como foi trazer essas características?
Da mesma forma que escolhemos como profissão, essas são coisas que nos inspiram, de algum jeito ressoam mais profundamente para cada um, no sentido de tirar um entendimento maior do mundo a partir delas. A incorporação delas no projeto não foi totalmente consciente, eu diria que permearam conceitualmente o desenvolvimento das coisas por constituírem parte das nossas referências mesmo, assim como as referências musicais e estéticas. É muito divertido como existe um humor e uma cartunização do modo de retratar essas outras viagens mais fundas, da relação dos minérios, do mar e o que é etéreo de uma forma divertida, de fácil associação. É quase como se tivéssemos duas pontas de uma mesma corda fazendo uma força oposta o tempo todo, onde quanto mais complicado fica nosso conceito e execução, mais palatável e amigável precisa ser no primeiro contato com o ouvinte.
O álbum foi produzido durante quatro anos. Como foi o processo e como vocês lideram com este tempo?
O processo foi extremamente meticuloso. Por algum tempo, nos encontrávamos quase toda semana no estúdio do Daniel pra passar horas e horas experimentando e tomando decisões, às vezes muito específicas. Algumas músicas remontamos do zero, outras partimos quase totalmente do que já tinha na demo, mas sempre com um cuidado enorme com o timbre de cada instrumento, a edição das linhas, os encaixes de dinâmica das músicas e todo o refino oculto que acontece durante a produção para, de repente, estar soando muito mais claro, cheio, impactante, bonito. O projeto foi se concretizando no tempo livre entre as responsabilidades e afazeres cotidianos, então a pressa não era uma opção. Fazíamos quando dava pra fazer, e se não desse, ficava pra uma outra hora, por vezes alguns meses sem fazer. Tivemos momentos de aflição, com certeza, mas como dupla temos uma dinâmica de se pilhar e se tranquilizar mutuamente. Essa lenta cocção se reflete no disco, dá pra ouvir o cuidado e o gosto com que ele foi feito, como foi montado e temperado com delicadeza. Não termos prazos e partirmos de uma relação não exclusivamente profissional com nosso produtor também acrescentou um ar descontraído, divertido, para as sessões e, portanto, para o produto final. Sendo nosso primeiro disco, talvez tenha demorado mais do que precisava - estávamos muito apegados às nossas ideias iniciais e aprendendo ainda as etapas do processo, mas ganhamos muita bagagem para os próximos projetos.
Em “Cassis Cornuta” vocês cantam: “Tenho pensado em mim atrás da direção / Tenho pensado em mim sem forma e sem dimensão.” Como seria uma pessoa sem forma e para qual direção pretendem ir?
A pessoa sem forma, que procura uma direção, dialoga com a ideia do livre corpo molusco, em oposição ao firme corpo robusto. É uma balança entre a liberdade maleável do incerto e a segurança de algo rígido, determinado, previsível. O que é reconfortante pode se tornar sufocante e vice-versa. Quanto à nossa direção, estamos agora saindo do computador e ensaiando uma banda com mais membros, queremos rodar as casas de São Paulo e quaisquer outras cidades que nos acolham, seja para fazer show ou discotecar nossas referências. Temos muita vontade, desde sempre, de produzir conteúdo junto com outros artistas das várias cenas musicais, então isso também é algo para ir atrás.
“São Sebastião” retrata as memórias afetivas, mas em “Babel” vocês cantam: “Deixo a história proutra hora.” Gostaria de saber como é feita a escolha de quais histórias querem contar e quais histórias vocês pretendem alcançar no futuro para, em seguida, apresentar em canções.
Desenvolver essa atenção aos ganchos do cotidiano pra transformar em arte é um exercício, quase muscular, de transformar o nada em algo. Desde que começamos escutar muita música e se atentar na diversidade de temas e possibilidades que existem fora da música de mercado, nossa curiosidade de desenvolver músicas divertidas sobre qualquer assunto se aguçou e a ideia geral do que somos foi vazando, transbordando aos poucos nessas sementes de composição. É quase como se a gente montasse uma engenhoca que se reveza entre o modo Antena e o modo Esponja, onde a captação de qualquer onda é captada e absorvemos todo o caldo antes de espremer e extrair o néctar do nosso interesse. Enquanto compositores nos revezamos em partes diferentes das ideias, mas somos comprometidos em criar pequenos fragmentos de ideia que durem aquele infinito de três, quatro, cinco minutos… E possa ser visitada para sempre pra se conectar com aquela primeira energia de bolar algo, ter um estalo que liga as duas peças disformes.
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