A palavra travessia é sinônimo de vida, já que com ela é possível compartilhar os sentimentos e as experiências. Dessa maneira, conseguimos refletir o passado e o presente, visualizando maneiras para lidar e viver no futuro. No entanto, não é fácil fazê-la: é preciso muita coragem.
Há três anos, o mineiro Haroldo Bontempo divide com o público a sua própria trajetória. Acompanhado de seu violão, o cancioneiro leva sua bossa nova para todos os lugares, emocionando, abraçando e alegrando aqueles que precisam da música para continuar, afinal, viver é muito perigoso.
A vontade de expressar surgiu na infância, mas foi com o passar dos anos que as técnicas se transformaram e tornaram-se dois discos: Música Para Travessia (2020) e Haroldo Bontempo (2022). Ao narrar sua trajetória, com extrema coragem, é possível que o ouvinte se veja em Haroldo, fazendo com que ele entre em sua jangada para fazer uma travessia em dupla.
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Em 2020, você lançou a sua carreira solo oficialmente. Quando foi o momento que você percebeu que precisava colocar no mundo suas canções?
Teve um momento bem pontual. Eu tenho uma banda [Mineiros da Lua] e comecei minha carreira na banda e já tinha um tempo que eu já tinha umas músicas que não iam para o repertório da banda e eu passei um tempo pensando "será que eu gravo alguma coisa? Será que faço alguma coisa minha?", mas nunca levei pra frente. Até que teve uma vez que fui tocar em São Paulo, na época, eu tava fazendo banda de apoio para um amigo meu que se chama Arthur Melo, e ficamos na casa de um amigo que também chama Arthur, o Artur Quintanilha. Passamos uns dias na casa dele, fiquei mostrando minhas músicas para ele no violão e aí ele me falou: "Eu vou abrir um selo para lançar uns trabalhos e eu quero lançar suas músicas" - esse foi o ultimato. Foi isso que me moveu a gravar Músicas Para Travessia. Peguei as poucas economias que eu tinha e, no final de 2019, eu fui lá para a Ilha do Corvo, que é onde fica o estúdio do Leonardo Marques, e falei: "Olha, tenho aqui três mil reais e catorze músicas para serem gravadas" [risos].
Como é iniciar uma carreira solo durante a pandemia?
Pois é, né… [breve suspiro] É realmente uma incógnita pra mim, eu fico pensando: "como seria a minha vida hoje se não tivesse sido no meio da pandemia? Se eu tivesse lançado um ano antes? Se eu tivesse lançado este ano?" Foi uma coisa que eu não vi acontecer, né. Foi uma coisa 100% resposta digital. Eu vi alguém comentar no meu Instagram, sabe? Era aquilo. Eu até pensei muito nisso quando fui lançar o meu segundo disco… É aquele momento que, sei lá, vou no botequinho tomar cerveja e encontro um amigo meu e ele fala que escutou o meu disco… Isso não aconteceu no primeiro disco, né. Teve uma lacuna aí. Tentei suprir isso com os clipes, tentei movimentar digitalmente.
Deve ser muito estranho se lançar ali, se lançar sozinho, já que é apenas o seu nome e seu rosto. Você sentiu alguma dificuldade em se expor sozinho?
O primeiro lançamento foi bem fácil, depois eu fui sentindo falta… É muito solitário, sabe? Tudo recai sobre mim, né. A decisão de tudo é minha; em alguns momentos isso é bom, tem uma certa liberdade, mas vira e mexe eu faço as coisas e fico pensando: "será que é isso mesmo?". Quando a gente tava na banda, às vezes a gente até brigava, discordava e quando se decidia, a gente falava "então é isso" e pronto. Apesar que é aquele negócio: as coisas acabam fluindo com mais rapidez, fluindo melhor, porque não passa por quatro mentes, não precisa do acordo de quatro pessoas, mas fica essa insegurança - mas isso é uma característica pessoal minha.
Soou estranho estar sozinho? Não ter os amigos para estar ao seu lado? Não foi difícil começar do zero?
Acho que a questão de não ter os amigos do lado é realmente doloroso. Eu já vi uma entrevista do Tom Jobim falando isso, especialmente pra fazer show - e eu sinto a mesma coisa. Uma coisa é subir no palco com a banda, tá cada um ali e ali a gente é a banda. Agora, quando eu subo em um palco sozinho, fica aquela coisa… Na entrevista, Tom Jobim falava: "é muito fácil subir no palco com Vinicius de Moraes e Toquinho, mas subir no palco sozinho…". Tudo ali é sobre você. Às vezes, a gente tá inseguro, não tá no melhor dia e aí ter essa tensão toda, acaba sendo, como os ingleses dizem, overwhelmed. Mas eu acho que é uma questão a ser lidada, uma coisa a ser aprendida. Enfim, um desafio a mais. Eu acho que quando eu [me] lancei, eu não senti muito como se fosse começar de novo, porque eu já tinha começado bem à frente, sabe? Tudo que eu aprendi com os lançamentos do Mineiros da Lua, a abordagem que se deve ter com a imprensa, a abordagem que se deve ter nas redes sociais, os métodos de divulgação, eu já parti de algum lugar… Então, em momento algum me soou como começar de novo, é como uma ramificação.
Os Mineiros da Lua tem uma proposta e você surge com a bossa nova. Como foi sair de um estilo e ir para outro?
No Mineiros da Lua é uma mistura que a gente fazia, um caldeirão. Desde que eu entrei na faculdade, meu estudo é a música brasileira. Tanto é que que os Mineiros da Lua, a parte que eu mais acrescentava dialogava com tudo isso; os acordes mais coloridos, as notas que são os acordes da bossa nova, que eu dava um jeito de introduzir ali. Então, foi uma coisa bem natural pra mim. Talvez, o que eu faço hoje com minha carreira solo seria o que eu contribuo isoladamente nos Mineiros da Lua, sabe? Claro que acabo ampliando um pouco mais, mas pra mim foi bem orgânico porque, como eu disse, era o que eu já estudava, então, foi um momento de foco.
O nome do seu primeiro álbum, Músicas Para Travessia, é muito interessante, porque junto com a narrativa mostra, literalmente, uma travessia. Durante esse caminho é possível conhecer quem é Haroldo de verdade?
Acho que não em sua totalidade. Eu tô até abrindo aqui [no computador] para lembrar o repertório… Os meus dois primeiros discos tem um teor autobiográfico muito grande. No Mineiros da Lua, a gente sempre sentava e fazia um disco com conceito, os meus discos não, são músicas que realmente falam da minha vida e dos meus sentimentos. Músicas Para Travessia tem músicas aqui que são muito carregadas: tem uma música que fiz pro meu pai, outra para minha mãe e para minha avó. "Imaculadas", uma das últimas músicas, é sobre a relação da minha mãe com a minha avó, porque ela cuidou dela nos últimos anos. Músicas bem sentimentais mesmo… Acho que sim, uma pessoa que ouve essas canções, termina o disco me conhecendo um pouco mais.
Não dá para entregar tudo de bandeja, né?
Não, nem se eu quisesse.
É possível fazer uma travessia tranquila, sem tanta turbulência?
Se você tiver sorte é, ué [risos]. Mas só se você tiver muita sorte. O que é de se esperar é que tenha muita turbulência, até para colorir e enriquecer a travessia, sinal que você andou o suficiente para se deparar com alguma coisa.
O seu segundo álbum continua na bossa nova, mas traz outros elementos. Quando você percebeu que gostaria de adicioná-los? Como foi esse processo?
Pois então, Música Para Travessia, como falei, foi um disco mínimo, bem focado na voz e no violão e depois que eu lancei ele, fiquei pensando em arranjos. O argumento do meu segundo disco é esse, ser um disco com arranjos, onde eu queria propor esse estudo e tentar isso. Teve uma vez, na virada cultural do ano passado, encontrei um amigo meu de Uberlândia e ele comentou "pô, o disco que você lançou é irado. Como funciona? Você chega lá com voz e violão e o Léo coloca as coisas?" e eu fiquei até bravo com ele [risos]. O Léo ajuda bastante, dá uns toques, mas os arranjos, grande maioria, vieram da minha cabeça. Os baixos do disco quem toca sou eu, acho que tem uma música que o Lucca tocou o baixo e tem algumas que as próprias linhas de flauta foi eu que escrevi, fiz a linha e mostrei para o Vinicius e ele reproduziu… Mas eu gosto muito de dar liberdade também. O disco tinha essa prerrogativa de ser uma coisa mais trabalhada, com arranjos maiores, maior instrumentação e eu contei com a ajuda do Vinicius Mendes, tive ajuda do Lucca Noacco e trabalhei com uma gama de artistas que eu não tinha trabalhado antes. Teve o Estevan Barbosa que fez algumas baterias, tem minha amiga Ingrid que fez um baixo acústico… Foi bem legal construir músicas maiores. Hoje, escuto ele [o álbum] e reparo nos arranjos e fico bastante orgulhoso. Esse disco foi mais pra isso, explorar lugares novos.
Você explora vários lugares, assim como os temas… Tem uma música política, questões familiares e sobre relacionamentos. Essas abordagens também foram orgânicas?
Foram orgânicas. Como falei, autobiográficas, acaba sendo um espelho do que tô sentindo. Eu penso bastante em política, ultimamente nem tanto, mas penso e acaba sendo natural. "Brasil, 17h" foi uma letra que eu fiz, até tentando, ver onde eu chegava - o quão sentimental eu conseguia ser falando disso. Eu me espelhei muito no Chico Buarque que você fica "mas ele tá triste ou é uma coisa que ele tá falando?" - esse foi o ponto dela. O resto acaba sendo muito pessoal, bem a minha vida mesmo. Tirando "Ensaio Sobre a Culpa" e "Blues Chilango", porque as letras não são minhas.
Além de estar se expondo com o seu nome e seu rosto, você traz muito suas vivências nas letras. Como você se sente?
[pausa] Eu nunca pensei sobre isso [risos]. [breve pausa] Eu acho que não é estranho pra mim, eu nunca me senti estranho porque eu sou uma pessoa bem aberta. Não sei, realmente foi… É bem orgânico pra mim e é bem sincero e o tempo todo a proposta esteve muito clara, né? A proposta era fazer um disco pessoal, tanto que o disco leva o meu nome. O primeiro disco tinha uma coisa ali que eu ainda tava pensando - era uma travessia? Era minha travessia? No segundo [tem] os meus sentimentos nus e crus. Eu acho bom porque… Acho que isso abre margem. Eu acho que é bom eu ter isso registrado e eu ter isso expressado.
Existe uma harmonia entre o lirismo com os sentimentos e as imagens que você cria nas canções. Esses elementos sempre estiveram presentes com você ou você desenvolveu no decorrer do tempo?
Acho que a ideia sempre teve, mas foi uma coisa que eu exercitei, né. Acredito que quando eu era mais novo, quando comecei a escrever, eram coisas muito genéricas, eram imagens não tão pessoais e, conforme o tempo foi passando eu fui aprendendo a escrever bem fiel ao que eu tô vendo e criar essas imagens nítidas, né. Sempre gostei de escrever, quando eu era criança queria escrever um livro… Enfim, eu gosto muito de contar histórias, até quando eu encontro os meus amigos sempre tem um caso que eu gosto de contar e eu conto com a maior polpa. Acho legal passar essas imagens, passar um pouco a minha visão… Acho que é uma característica minha e que vou aperfeiçoando e espero ainda estar aperfeiçoando. Na música com o Donato [“Risada” que será lançado na próxima quarta-feira, 8] acho que foi uma música que consegui…
O que você espera - e se espera - despertar nas pessoas que te ouvem?
Não tem uma coisa, eu quero que elas sintam. Acho que é fazer uma cosquinha na sensibilidade e ser mais um convite. Claro que cada música tem uma coisa bem pontual, que o ouvinte pode chegar, pode chegar não, pode partir dali para chegar em algum lugar. Onde a pessoa vai chegar depende dela.
Um álbum foi lançado em 2020 e outro em 2022, diferentes épocas, um ano pandemico e outro com liberdade. Quais são as diferenças e os impactos de dois diferentes momentos que você vivenciou? Como isso te impacta para os seus próximos trabalhos?
Na verdade é bem nítido as mudanças, tanto na criação. Muitas dessas músicas do segundo disco, escrevi antes da pandemia, mas escrevi algumas durante a pandemia e era uma coisa mais fechada, né, porque não tem um cotidiano, não vou para um encontro de amigos, tava tudo fechado no que eu tava sentindo e nas paredes da minha casa. Tem também a diferença da posição mercadológica; como eu falei antes: lançar um disco e sair dando as caras nos lugares para ele ser visto. O meu primeiro álbum não teve isso e acho que isso faz a maior diferença. Tem o momento forte do momento da criação que limita a inspiração que a gente tem, né e essa questão do social que acaba sendo a cena, né. A gente precisa dar as caras para as pessoas lembrarem da gente - eu tenho um pouco de preguiça de redes sociais e isso acaba sendo fundamental [risos].
"Risada": a parceria de Haroldo Bontempo com João Donato
Existem gigantes da música brasileira que se tornam heróis. Em nossos sonhos, acabamos nos tornamos amigos e, com sorte, fazemos algum trabalho juntos. E quando este sonho se torna realidade? Após realizar a abertura do show do Síntese do Lance, de Donato e de Macalé na Autêntica, em Belo Horizonte, Haroldo Bontempo apresentou uma música nova ao artista que disse que estava faltando algo. Ele mesmo propôs de fazer uma segunda parte, selando uma composição em parceria.
"Eu peguei um ônibus pro Rio, fui pro Marini (histórico estúdio do Kassin) e pouco a pouco foram chegando os integrantes da banda e, por fim, Donato. Eu estava ali com medalhões da música brasileira, com um dos criadores da bossa nova e do latin jazz, com integrantes do Clube da Esquina e estávamos trabalhando juntos! Além da emoção de trabalhar com ídolos, também voltei do Rio com muito mais segurança do meu trabalho e da minha capacidade", explica.
"Risada" é uma canção que mistura a essência de duas diferentes gerações, projetando imagens de alegria no amanhã para vencer o cansaço e a tristeza do hoje. O legado de João Donato segue vivo e intenso.
Você teve a honra de compartilhar o mesmo espaço com Donato e Macalé. Como foi a honra de estar ao lado de dois gigantes da música?
Foi uma doideira! Nossa [risos]. Foi até engraçado porque eu gosto muito do Jards Macalé, sou fã dele, mas estupidamente mais fã do Donato. Então, lá no dia, o que eu conversei com o Macalé foi fora de sério! Só que eu chegava perto do Donato…
Silêncio…
Não sabia o que fazer, ficava nervosíssimo. Foi bom demais! No meu repertório tinha alguns clássicos da bossa nova, tipo "Consolação", "Insensatez". Lembro que a baterista Theodora Viana virou e falou pra mim: "tava ali no camarim e quando você tava tocando "Insensatez" [violão e voz, sem a banda], o Jards Macalé tava lá dentro e cantando junto". Foi… É até difícil colocar em palavras. Uma gratificação muito grande e entra na questão de trabalho, porque esse evento foi eu que produzi. Foi bem enriquecedor!
E você teve a coragem, que eu bato palmas, de fazer uma parceria com o Donato. Como foi conviver e trabalhar com ele?
Ele é muito caladão, sabe? Difícil de interpretar, sabe? Eu acho que só consegui chegar a algum lugar por conta de coragem. Minha mãe até comenta comigo: "se eu tivesse metade da sua coragem…". Teve realmente um momento de coragem… Eu lembro que quando eu tava produzindo o show, quando tava em contato com a empresária do Donato e do Macalé para vender o show dos dois, comentei com ela "eu tô com algumas músicas aqui, será que o Donato?" e ela nem respondeu [risos]. Ok, não é com ela. Aí quando eu tava passando o som e o Donato tava indo embora era a última chance. Depois foi aquele negócio: uma coisa puxou a outra. A Ivone [companheira do Donato] gostou da música, comentou comigo e brincou comigo com "cadê o piano do Donato para ele gravar?". Semanas depois, comentei com ela: "você comentou disso e tal, será que tem uma possibilidade real?" Eu tenho a coragem das coisas, mas faço tudo com muita timidez, com muita educação, não sou [do] cheguei [ênfase na palavra]… Aí ele falou que tava faltando uma parte e disse que faria [sorri]. Nós tivemos uma interação prévia no dia do show e aí teve o dia da gravação que a gente passou o dia inteiro juntos e foi um momento muito bacana porque ele tava muito a vontade, ele pediu para gravar com a banda dele e ele tava super a vontade. Foi muito legal ver o jeito dele trabalhar… Uma coisa que eu levo pra mim é que aquilo foi um desafio pra mim, sabe? Testar minha postura mesmo, será que eu conseguiria me comportar no estúdio? Uma parte de mim acreditava que eu chegaria lá e só ficaria gaguejando, sem gravar nada… Aí demonstrei que não tenho só coragem [risos], mas um pouco de jogo de cintura.
Qual a sua expectativa com o lançamento, após a perda do Donato?
Tem uma tristeza, porque no fundo eu pensava "e se a música for um sucesso?" Aí eu lanço outra com o Donato, a gente vira parceiros e sei lá o que… Existia essa esperança em mim, agora é só um registro, uma coisa que aconteceu. Eu realmente não sei o que esperar, principalmente por parte dos fãs do Donato, como eles vão receber isso… Talvez isso seja mais uma prova, sabe? Não uma prova, mas uma questão, se eles vão gostar… Eu tenho fé que sim, porque tá muito no espectro do Donato. Acho que é uma música que as pessoas vão ouvir e pensar "é isso mesmo", não só pela voz dele.
A travessia de Haroldo Bontempo continua. Para o futuro, o músico pretende lançar o EP Indie Hippie Retrô Brasileiro, que faz uma brincadeira com a música "Eu Confesso", do trio O Terno. Ele dá algumas informações sobre: "Esse disco tá um pouco diferente, ele tá menos autobiográfico, é um disco que o foco é na sonoridade e ele é diferente das coisas que eu fiz, porque os dois primeiros discos eu cheguei no estúdio com o repertório, com a lista de músicas e vamos nessa." Uma vez presente na sonoridade de Haroldo, é impossível sair. Seguimos.
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