De 1970 a 1986, Andrei Tarkovsky manteve diversos diários, detalhando seus dias, sentimentos, perdas, dívidas e o processo de seus filmes. Dizem que quem mantém o ato de escrever diariamente em cadernos, é um indivíduo que transborda constantemente e precisa se aliviar. Ana Cristina Cesar dizia que o diário é como um confidente para obter o alívio necessário: "(...) o impulso básico de escrever é mobilizar alguém, mas você não sabe direito quem é esse alguém". Talvez, Tarkovsky sabia com quem estava conversando: com ele e para um telespectador que está com ele - talvez seus filhos (que são mencionados constantemente) ou seus admiradores.
O cineasta russo tinha 38 anos quando começou a descrever o que enxergava e o que sentia, seguindo a mesma linha de seus filmes. Em "Diários: 1970 - 1986" (É Realizações Editora, 2011), conhecemos a fundo o diretor que se sacrificou para compreender (ou tentar) o ser humano e a busca da liberdade que sempre desejou. Em um determinado momento, escreveu sobre qual era sua missão em vida: "(...) Quero preencher completamente a vida ou as vidas das pessoas. Estou apertado, a minha alma está apertada, preciso de algum outro recipiente".
A capa do primeiro diário leva o título de "Martirológios", dando um spoiler do que será mostrado nas páginas seguintes: registros dos mártires da vida até a morte. Sua fé é abalada no início dos anos 70, quando Goskino URSS (Comitê Estadual de Cinematografia da URSS na União Soviética) fica em sua cola por conta da longa duração de "Solaris" (1973). Se o início da carreira de Tarkovsky tinha tudo para dar certo, o comitê começa a denegri-lo, com o objetivo de prejudicar seus próximos filmes.
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Andrei Tarkovsky nunca se recuperou das guerras. Elas deixaram marcas profundas no diretor, que buscava encontrar respostas através de sua arte. No entanto, era censurado constantemente, não tendo a chance de exercer as ideias que tinha, sendo obrigado a alterar roteiros, externas e a montagem de suas obras. Quando escreve sobre seu trabalho, Tarkovsky dá a entender que seus "chefes", ou seja, o governo, não o suportavam e queriam que sua carreira fosse para lama. Inclusive, em um determinado momento, o diretor russo começa a ficar aclamado em outros países e o Goskino tenta acabar com essa fama.
Quando chega na Itália para verificar as externas de "Nostalgia" (1983), Tarkovsky escreve em seu diário os diversos medos que tinha ao imaginar que o governo pode ir atrás de sua família que mora em Moscou, por conta dele e de seus filmes. É angustiante ler as palavras do diretor que sente saudade da família ("Conversei com Larissa. Ela está ruim. Diz que podem levá-la ao hospital. Oh, Deus!") e que precisa se manter fiel ao que acredita para continuar realizando suas obras. A briga que arrumou para ter sua esposa e filho ao seu lado, em exílio na Itália, é um dos temas mais sombrios retratados no livro. Tarkovsky e Larissa adoecem constantemente ao buscar uma saída e ter a liberdade que a URSS não dava à eles.
Seus diários são duros. A falta de dinheiro, a solidão e suas doenças machucam o leitor, porque sentimentos na pele o que o diretor passou e ficamos incrédulos ao saber que Tarkovsky, responsável por filmes belíssimos, passou por tudo isso. E o pior: morreu na pior, sem nada.
"Chernobyl assustou a todos só porque a semiliberdade da imprensa levantou o véu e tornou possível estimar o tamanho da catástrofe. Uma catástrofe com a permissão do governo, que continua nos últimos cinquenta anos, permanecendo na sombra, como se não existisse. Por cinquenta anos os governos que se apropriam da energia nuclear cometem um crime permanente contra a humanidade, pois, desta vez, não entendemos que com a descoberta da energia nuclear chegou uma nova etapa para a ciência, que proíbe o empirismo, rastejando na metodologia científica. Talvez não haja guerra nuclear nenhuma. Os homens não são tão estúpidos. Mas de fato, sem ela, a humanidade já luta e morre no campo da batalha nuclear. A guerra já está em andamento. Apenas as crianças e os loucos não a veem."
Fazendo o papel de diário, ou seja, de um confidente, Tarkovsky escreve também suas impressões sobre diretores estrangeiros e filmes que assistiu em Roma. É engraçado ler que ele não gostou de filmes de Michelangelo Antonioni e que fala mal de Federico Fellini e Ingmar Bergman. Tarkovsky era crítico e rigoroso com a sétima arte - só gostava daquilo que era real, que proporciona sentimentos reais para quem assiste.
Ainda sobre cinema, ele registra as queixas que tem com o elenco que auxilia seus filmes. Em alguns momentos é engraçado, em outros, cruéis. Ele não perdoava ninguém, mas depois de alguns dias, tudo voltava ao normal.
"Não importa que a esperança seja um engano, mas ela dá a oportunidade de viver e amar o belo. Sem esperança não há homem. Na arte deve-se mostrar o horror em que vivem as pessoas, mas só se for encontrada uma maneira de expressar Fé e a Esperança. Em quê? Para quê? Apesar de tudo, o homem é cheio de boa vontade e sentimento de dignidade. Mesmo diante da morte. Com isso ele nunca trairá seu ideal, seu Fada Morgana, sua miragem, que é a sua vocação humana."
Nos últimos capítulos dos diários, consequentemente 1985 e 1986, Andrei descobre o câncer. Ele está fraco, perdendo os cabelos, querendo dar continuidade aos projetos e ainda sofre por não ter uma casa e nem dinheiro. Em alguns momentos, o desespero o enlouquece, assim como o protagonista de "O Sacríficio" (1986), Alexander. Ele é esperançoso, os exames mostravam que os tumores diminuíram de tamanho, mas no decorrer do tempo, percebe que o seu tempo está acabando.
Andrei sabia que uma hora iria chegar a sua hora, mas não tão cedo - 54 anos. Deixar seus filhos era um pesadelo. 15 de dezembro de 1986 foi a última vez que escreveu em seu diário, relembrando Hamlet e fazendo novas listas.
"Não tenho certeza de que depois da morte existe o Nada, um vazio, como explicam os sabichões: um sono sem sonhos. Mas ninguém conhece nenhum sono sem sonhos. Simplesmente alguém adormece (e lembre-se disso) e acorda (lembra-se disso também). E o que estava entre esse intervalo, ele não vai lembrar. Porém, havia algo! Só não se lembra."
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