Em "O Afogamento de Virginia Woolf" (Patuá, 2019), primeiro livro de Mariana Godoy, a escritora revisita seu passado para escrever sobre a falta da figura paterna, sua infância e suas dores. A família (e o seu peso) reaparece(m), com um novo personagem, em "Trasgo Nas Masmorras" (Primata, 2021). A obra faz parte da "Coleção Plaquetes", que reúne poesias brasileiras contemporâneas de diversos escritores.
O título foi retirado de "Harry Potter e a Pedra Filosofal". Hermione estava no banheiro, chorando, quando um Trasgo invadiu o cômodo para assustá-la. Mariana explica logo início do livro: "quando o meu tio morava com a gente em são paulo / o meu irmão e eu tivemos a ideia de chamá-lo de trasgo / já que ele gostava de ficar batendo nas portas / a gente lembrava sempre daquela cena / em que um trasgo entrava no banheiro das meninas / e tentava atacar a hermione / em harry potter e a pedra filosofal / "trasgo! trasgo nas masmorras" / gritávamos pra avisar um ao outro / que ele já tinha voltado do trabalho." É preciso lembrar que o mundo do menino que sobreviveu marcou uma geração que olhava todos os dias a caixa do correio, torcendo para que a carta para estudar em Hogwarts chegasse logo. Hoje, muitos anos depois, arrisco a dizer que Harry Potter marcou crianças e adolescentes que viam familiares brigando por qualquer motivo. Entrar no mundo encantado de bruxos era um meio para fugir da realidade.
No novo poema de Mariana, conhecemos o tio que morou com ela. Uma casa, duas crianças, uma mãe, um tio e um cachorro - esses são os personagens. O tio é o típico homem que engrossa a voz ao falar com mulher e que se sente poderoso por ter uma arma e fazer parte da "instituição do bem" que é a polícia. O tio se transforma em um trasgo, uma alma penada que assusta crianças, como é visto no folclore.
A família também é tema na poesia de Sylvia Plath - no poema "Papai", a escritora deu outros significados ao seu pai: "(...) Peso de mármore, saco repleto de Deus, / Estátua medonha com um dedão gris / Do tamanho de uma foca de Frisco". No texto de apresentação de "Poemas", (Iluminuras, 1991) que reúne alguns poemas de Plath, Rodrigo Garcia Lopes escreve que os poemas de Sylvia são violentos e sempre na primeira pessoa, que tem o objetivo de exorcizar aqueles que a traumatizaram. Aplico as palavras de Lopes para os escritos de Mariana.
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Quando um livro traz a história de uma família desestruturada, as chances do leitor se enxergar, em algum momento, no enredo são grandes. É possível se ver nas palavras de Mariana Godoy. Não pense que isso seja ruim, pelo contrário, é um ótimo meio terapêutico para relembrar o passado e jurar que no futuro, você nunca será um trasgo, repetindo o comportamento do tio.
Terminei de ler o livro de noite, demorei alguns dias para escrever à autora dizendo o que achei. Dizendo algumas palavras sobre a obra, por WhatsApp, aproveito o espaço para perguntar sobre o tema família: "escreve sobre para, talvez, matá-los ou mostrar a verdade?". Quatro minutos depois, ela me responde, com um áudio: "Eu acho que nem é sobre isso, acho que nem é o fato de escrever sobre a família. Quando eu fiz esse texto, eu estava interessada em trabalhar a memória, a escrita da memória. Acho que é por isso que o poema é todo fragmentado - é um poema só e é todo fragmentado porque a memória é fragmentada. Acaba que a família está sempre presente, porque eu vou pesquisar um lugar do passado que a família está muito presente e aí entra a memória familiar. Eu não sei se é sobre a família que eu quero dizer, mas foi uma pesquisa da memória, o que eu lembrava, da experiência de viver com esse tio".
Reflito sobre a família e esse tema na literatura. Além de Sylvia, Virginia Woolf escreve sobre a sua em "Rumo Ao Farol" e "O Quarto de Jacob", enquanto Kafka descrevia sobre o medo que tinha de seu pai em suas obras, além da necessidade de ser amado. O escritor escreve para se aliviar, para continuar sua trajetória, por isso tantos temas, tantos livros, tantos demônios.
o trasgo fazia nossa casa se parecer com uma prisão
uma vez quebrou a porta do meu quarto
porque eu estava ouvindo um disco
do chico buarque
o trasgo ficava gritando e chutando a madeira
porque não queria escutar
"música de comunista!"
como ele mesmo berrava
eu não sabia o que significava comunista
mas a foice e o martelo
juntos
me lembravam as hélices dos helicópteros de resgate
os mesmos helicópteros
que esperamos nesses momentos
em que a fantasia não dá conta.
Só no final do livro, descobrimos o nome do tio. Porém, ao terminar a leitura, percebo que eu não precisava saber a identidade do tio, pois ele é um dos diversos homens que estão presentes em nossa sociedade. Os trasgos nos rondam o tempo todo e precisamos colocá-los em outro lugar, onde não nos ataquem mais. Façamos como Mariana: escrever é o melhor método para matar.
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