Muito se fala sobre Elena Ferrante: sua escrita, o poder feminino, a relação entre mãe-filha e o anonimato que se iniciou na publicação de "Um Amor Incômodo" (1992), seu primeiro livro, porém, desde o sucesso da "Série Napolitana", jornais e admiradores deixaram a literatura da escritora em segundo plano para buscarem respostas sobre a identidade da autora italiana. Pergunto: precisamos conhecer quem escreve as obras que nos emocionam? As palavras já não são suficientes?
Em "Frantumaglia: Os Caminhos de uma Escritora" (Intrínseca, 2017), único livro de não ficção, a autora responde questões sobre sua identidade, seus livros, confronta jornalistas e se contradiz (quem nunca?), além de compartilhar cartas e partes que foram descartadas do livro "Dias de Abandono" (2002). Logo na primeira página, os editores Sandra Ozzola e Sandro Ferri, explicam o porquê de publicarem "Frantumaglia": "(...) Para satisfazer as várias curiosidades desse público exigente e ao mesmo tempo generoso, decidimos reunir aqui algumas cartas da autoria Edizoni e/ou, além das poucas entrevistas dadas e da correspondência com leitores excepcionais. Os textos esclarecem de modo definitivo - esperamos -, dentre outras coisas, os motivos que buscam a escritora a permanecer, há dez anos, fora da lógica da mídia e de suas necessidades". Sobre o título, é a própria escritora que explica: "(...) A frantumaglia era misteriosa, causava atos misteriosos, estava na raiz de todos os sofrimentos que não podiam ser atribuídas a uma razão única e evidente. (...) É uma paisagem instável, uma massa aérea ou aquática de destroços infinitos que se revelam ao eu, brutalmente, como sua verdadeira e única interioridade."
Assim como Virginia Woolf, que defendia que para uma mulher ser escritora precisava de um teto seu, Ferrante explica, nesta obra, que é preciso ter um espaço sagrado, longe de ruídos, para criar, mas ao afirmar isso, penso nas mulheres que são mães e/ou são sugadas pela imensa carga horária de trabalho - elas encontram tempo para escrever, mas o ambiente deve ser barulhento, com as vozes de filhos e da rua, além de fraldas e brinquedos, não é o lugar adequado para dar continuidade à narrativa. Ferrante vai além, diz que a escrita deve ser verdadeira, ou seja, deve despertar algo aos que leem - "(...) Para tolerar a existência, mentimos, sobretudo a nós mesmos. Às vezes contamos belas fábulas, às vezes dizemos mentiras mesquinhas. As mentiras nos protegem, atenuam a dor, permitem que evitemos o susto de refletir seriamente, diluem os horrores do nosso tempo, salvam-nos até de nós mesmos. Por outro lado, quando escrevemos, não precisamos mentir. Na ficção literária, temos que ser insuportavelmente sinceros, sob a pena de tornarmos as páginas vazias."
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Durante a leitura, conhecemos um pouco mais sobre a pessoa que assina os livros que nos sensibiliza e incomoda tanto: é professora, tradutora e mãe. Diferente de algumas críticas, em nenhum momento Elena diz sua idade ou quais são os sexos de seus filhos - e isso não é importante, o que precisamos analisar são as palavras e os conteúdos de "Frantumaglia". Elena Ferrante nos ensina a ler atentamente, pois suas palavras são ricas em ensinamentos, e enxerga os demônios que o ser humano carrega dentro de si, muitas vezes causados por uma mãe que perdeu sua identidade.
"(...) Permita-me: não escolhi o anonimato, os livros são assinados. Escolhi, sim, a ausência. Eu sentia o peso de me expor em público, queria me desligar da história acabada, queria que os livros se afirmassem sem o meu patronato. A partir dessa escolha, nasceu uma pequena polêmica com a mídia, com sua lógica que aposta em inventar protagonistas ignorando a qualidade das obras, a ponto de parecer natural que os livros ruins ou medíocres que quem tem certa fama midiática mereçam muito mais atenção do que livros que talvez tenham qualidade, mas que foram escritos por um desconhecido. Hoje, no entanto, o mais importante para mim é proteger um espaço criativo que me parece cheio de possibilidades até mesmo técnicas. A ausência estrutural do autor age sobre a escrita de uma maneira que quero continuar a explorar."
Dividido em três partes, Elena Ferrante diz que tem dificuldades para escrever histórias que deseja contar e que prefere dar voz a temas complexos. Chama atenção a correspondência que trocou com o diretor Mario Martone, que deu vida ao primeiro romance da escritora. Além disso, as respostas às perguntas das jornalistas Giulianna Olivero e Cammilla Valletti devem ser lidas com atenção, pois Ferrante relembra sua infância e traz suas angústias.
"(...) O abandono é uma ferida invisível que dificilmente sara. Atrai-me do ponto de vista narrativo porque sintetiza bem a precariedade do que, em geral, consideramos constante, "natural". O abandono corrói as certezas dentro das quais achávamos que vivíamos com segurança. Não apenas somos abandonadas, mas podemos não suportar a perda, abandonar a nós mesmas, perder a coesão que havíamos garantido graças ao doce hábito de nos entregarmos a outros ou outras. Então, para sair dessa situação, precisamos encontrar um novo equilíbrio, mas levando em conta um novo fato: agora sabemos que tudo o que temos pode nos deixar e levar embora nossa própria vontade de viver."
"Frantumaglia" é um quebra-cabeça: quando juntamos os textos, conhecemos a autora, assim como sua origem e formação. O rosto de Elena Ferrante está em suas palavras, nos que livros que já foram ou serão publicados. Como ela escreveu: "(...) Acredito que quem escreve termina, querendo ou não, indo parar por inteiro em sua escrita."
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