Em 1969, o escritor norte-americano Philip Roth chocou a sociedade com o livro "O Complexo de Portnoy", que narra a história de Alexander Portnoy, um adulto sucedido que ao ser protegido em excesso pelos pais judeus na infância, tornou-se um neurótico, ou seja, indivíduo que está permanentemente em conflitos psíquicos que impedem de aproveitar a existência de forma prazerosa. Durante a obra, o protagonista desabafa com seu psicanalista, que conhecemos rapidamente na última página do livro. Deitado no divã, Alexander compartilha suas angústias e dúvidas.
Ao relembrar suas memórias, Portnoy compartilha os casos da mãe controladora e obcecada por limpeza; os problemas intestinais de um pai que não tinha voz em casa e uma irmã mais velha que passa despercebida pelos personagens. Uma família típica que o suga constantemente: "Estou vivendo minha vida no meio de uma piada de judeu - só que não é piada, não! Por favor, quem foi que nos mutilou desse jeito? Quem foi que nos fez ficar desse jeito, tão mórbidos, histéricos e fracos?". No entanto, o drama familiar fica em segundo plano, pois é a masturbação que ganha destaque - ao expelir o sêmen, Portnoy expeli suas palavras e, consequentemente, seus sentimentos.
Em "Por Que Escrever? Conversas e Ensaios Sobre Literatura (1960 - 2013)", Roth explica que o romance surgiu de destroços de quatro projetos abandonados, todos retratando a vida de um judeu: "Comecei a escrever um material de ficção com elementos autobiográficos calcado na forma como fui criado em Nova Jersey. (...) Achei que poderia formular uma história que atingisse o âmago do meio que cresci.” Ainda no livro, o escritor diz que foi inspirado em Franz Kafka, que retratou a culpa e a vergonha em seus livros, para dar vida às inseguranças de Alexander; assim, alcançava outra faceta do seu talento, alterando a forma literária como queria.
Cinquenta e três anos depois do lançamento, "O Complexo de Portnoy" continua chamando atenção de leitores - se no passado chocava, hoje, nos faz refletir sobre a criação dos pais, rir com o humor escrachado de Roth e causar incômodo pelos absurdos.
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O enredo da obra é simples: no consultório do analista, o Dr. Spielvogel, confidencia seu passado e seus desejos íntimos. Sem pudor, o rapaz conta o amor edipiano que sentiu pela mãe na infância e o desprezo e orgulho que sentiu pelo pai - é possível ver que Alexander buscou o lugar do pai, como explica a psicanálise. A adolescência foi marcada pelas idas constantes no banheiro: foi na masturbação que encontrou saída para lidar com os hormônios e náuseas. Em alguns momentos, pegava as calcinhas da irmã para dar vida às fantasias que tinha, aumentando o incômodo do leitor com o "incesto". Em "O Debate Sobre a Masturbação", Freud escreve que a masturbação compulsiva acontece quando o indivíduo está em sofrimento e busca encontrar uma satisfação.
"Além disso, às vezes, na hora do jantar, me recuso a comer. Minha irmã, que é quatro anos mais velha do que eu, garante que minhas lembranças correspondem ao que de fato acontecia: eu me recusava a comer e minha mãe não conseguia aceitar tamanho capricho - e tamanha idiotice. Não conseguia, para o meu próprio bem. Ela só está me pedindo para fazer uma coisa para o meu próprio bem - e mesmo assim eu digo não? A ela, que seria capaz de tirar comida de sua própria boca para me dar, será que ainda não percebi isso?"
Os relacionamentos de Portnoy não duravam, pois a família exigia que ele se relacionasse com meninas pertencentes à sua religião. Ao lembrar disso, Alexander conta do caso de um vizinho judeu que sofreu por amar uma shikse, moça que não é judia, se suicida; inclusive, na fase adulta, confessa que sentia atração por diversas mulheres, menos as judias. A religião soa como um fardo que não consegue suportar.
Já na fase adulta, Alexander tornou-se um advogado respeitável de Nova Iorque, mas ainda não se casou e nem tem filhos - e é aqui que sua angústia aumenta. O que adianta ter um ótimo emprego se não conseguiu ter uma família, um desejo dos seus pais?
Experiente sexualmente, o protagonista compartilha os casos que teve no decorrer de sua vida. Alexander fala com o psicanalista, mas também consigo mesmo, como se ao gritar consigo mesmo, consiga encontrar uma saída para o seu sofrimento. Em seguida, conta o romance que tem com uma modelo que conheceu por acaso na rua. Chamando sua namorada de Macaca (o incômodo do leitor aumenta), relata que tem vergonha de apresentá-la para os amigos e principalmente para a família, pois é analfabeta e não sabe se comportar. Por mais que queira seguir sua vida, o poder dos pais fala mais alto, deixando-o sem reação para o seu futuro.
"Quem foi que nos fez ficar desse jeito, tão mórbidos, histéricos, fracos? Por que é que eles continuam gritando "Cuidado! Não faça isso! Alex - não!", e por que é que, na minha cama em Nova York, eu continuo desesperadamente a bater bronha? Doutor, qual é o nome dessa doença que eu tenho? Será o tal sofrimento judaico de que tanto falam? Foi isso que sobrou para mim em consequência dos pogroms e das perseguições? dos deboches e xingamentos que os góis despejaram sobre nós nesses dois maravilhosos milênios? Ah, meus segredos, minha vergonha, minhas palpitações, meus rubores, meus suores! A maneira como eu reajo às vicissitudes mais simples da vida humana! Doutor, não aguento mais viver desse jeito, com medo de tudo e de nada! Me conceda a virilidade! Me faça ficar corajoso! Me faça ficar forte! Me faça ficar completo! Chega de ser um bom menino judeu, agradando meus pais em público e esfolando o ganso no meu quarto! Chega!"
Em "Por Que Escrever? Conversas e Ensaios Sobre Literatura (1960 - 2013)", Philip Roth comenta sobre o livro que se tornou um best-seller: "O livro não está cheio de obscenidades porque "é assim que as pessoas falam". Essa é uma das explicações menos persuasivas para usar a obscenidade na ficção; além disso, poucas pessoas falam de fato como Portnoy - ali está um homem expressando uma obsessão avassaladora: ele diz palavrões porque deseja ser salvo".
Roth alcançou o seu objetivo em "O Complexo de Portnoy": criou uma narrativa angustiante e absurda para abordar tabus que seguem presentes nos dias atuais. A obra é incômoda, mas é possível rir e refletir sobre a nossa criação, afinal, carregamos diversas complexidades.
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