"Diário de Anne Frank", "O Diário de Rutka" e "A Cor da Coragem: A Guerra de um Menino" são alguns dos diários que foram escritos durante a Segunda Guerra Mundial que viraram livros. Se levarmos em conta as obras de ficção, o número aumenta. Para alguns, o tema não chama mais atenção - "ah, de novo guerra? Isso já passou", reclamam. Sim, é passado, mas é preciso relembrar constantemente para que o erro (ou seja atrocidade, barbaridade, maldade…) não se repita. Uma pena que ainda hoje, século XXI, mais de oitenta anos depois, pessoas (ou seriam monstros?) continuam defendendo o genocídio. Infelizmente, ainda hoje, temos governos fascistas que compactuam com a xenofobia - que esperam que as pessoas morram.
O passado continua se repetindo.
Para relembrar, fazer com que os leitores de uma nova geração saibam o que aconteceu no mundo, em um passado não tão distante, a escritora Noemi Jaffe escreveu, em 2012, o livro "O Que os Cegos Estão Sonhando?" (Editora 34). A partir do diário de sua mãe, Lili Jaffe, uma sobrevivente do holocausto, a autora reflete sobre sobrevivência, religião e a condição humana. O que é aceitável para sobreviver no meio de uma monstruosidade? Qual o impacto do sofrimento na família, anos mais tarde? Falar sobre a tortura que sua mãe sofreu nas mãos dos alemães alivia? Indivíduos, de outra geração, que nunca passaram por uma monstruosidade dessa, conseguem compreender?
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Lili foi presa pelos nazistas quando era adolescente. Ela foi levada ao lado de sua família, irmão, pai e mãe. Os dois últimos não sobreviveram. Lili não ficou sozinha, encontrou suas primas e ficaram juntas quando foram encaminhadas para Auschwitz. Lá passaram de tudo, mas o pior (para quem também está lendo), é a tortura psicológica sofrida constantemente: "Será que é hoje que morro?" "Vou para a câmara de gás hoje?" "Qual o meu futuro?" "Eu não me importo com a morte". Lili vive (não, sobrevive) desse modo por um ano, quando é salva pela Cruz Vermelha e levada à Suécia. Em um novo país, ela começa um diário, que revisita os dias torturantes. O curioso é que Lili relata seu passado no presente, deixando seu discurso mais consistente e emocionante.
"Sinto-me em Kummelnäs faz dez dias. Sinto-me bem. Todos os instantes passo com alegria, como se estivesse com os pais e o irmão. Não me dói mais, diria, e é como se tivesse até esquecido. O destino é estranho: esquecemos com rapidez. Não esquecemos somente aquilo que é bonito e bom. Como seria bom se tudo fosse alegria; poder desfrutar da bela liberdade. Mas não é assim: o que carrego dentro do coração nunca vai passar e nunca mais conseguirei me alegrar."
A partir do diário da mãe, Noemi inicia suas reflexões. A busca da filha inicia ainda na adolescência, ao tentar compreender a mãe que não falava de suas emoções, tinha dificuldade de se expressar e odiava conflitos. Em um determinado momento, a autora relata que tinha inveja da família das amigas que brigavam e, depois de um tempo, conversavam. Isso é o que as famílias fazem, certo?
As dúvidas são respondidas após visitar Auschwitz em 2009. Ao pisar no campo de concentração, Noemi compreende tudo e começa a escrever o ensaio que ganha vida na segunda parte de "O Que os Cegos Estão Sonhando?". É um relato conflitante, amoroso e reconciliador, onde a autora explica a personalidade da sobrevivente e o impacto que causou em sua família, principalmente nas filhas. A partir disso, fico me perguntando se as filhas sentiram as dores da mãe quando estavam no útero, afinal, mãe e filho transformam-se em um por meses, querendo ou não.
"(...) Quando o dono da voz esqueceu suas palavras, ou sequer chegou a formulá-las e aparece alguém querendo portar sua voz, ele deixa. Lembre por mim as coisas que eu esqueci. Mas não me conte. Não quero lembrar. Isso você faz só por você; não por mim. Te dou minha voz, minha memória, porque não me importo com elas. Você é que se importa. Então vá e faça. Fique com elas e bom proveito."
É compreensível que a mãe esqueça o ocorrido, as atrocidades. Por isso, o papel da filha em relatar, compartilhar com os outros a vida que sua genitora teve. Não, não, aquilo não foi vida - foi uma atrocidade causada pelos alemães. Uma questão que chama atenção é ver Lili se apegar ao destino para se livrar da culpa por ter sobrevivido, diferente da outra menina que não teve sorte. Essa questão é abordada no capítulo "Mãe".
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Para finalizar a obra, a filha de Noemi, Leda Cartum, que também esteve ao lado da mãe na visita em Auschwitz, traz sua visão sobre o holocausto. Para Leda, o ocorrido soa como uma ficção, já que a família não falava sobre o assunto. Ela foi entender o passado de sua avó já grande, por outros. Por exemplo, sua avó não falava do número que tem tatuado no braço, dizia que era o número do telefone. Ao seu redor, holocausto era um tabu, proibido de falar, já que Lili preferiu esquecer.
Ao visitar o campo de concentração, Leda não sentiu nada, mas sabe que é judia e que tem orgulho de dizer isso. E como neta de sobreviventes da Segunda Guerra Mundial, é dever dela, dos mais jovens, recontar a história para não cair no esquecimento. A sobrevivência deve ser compartilhada para que o passado não se repita. Como escreveu a mãe na página 146: "(...) Distrair-se é sair dos trilhos. Para sobreviver é preciso estar nos trilhos e escapar esporadicamente deles; verso também é versão; poesia é versão fora dos trilhos. São necessárias versões, mentiras, simulações, histórias para sobreviver. Para sobreviver, para sobreviver à sobrevivência, para continuar, para lembrar, para esquecer, para lembrar."
Informações
O Que os Cegos Estão Sonhando?: Com o Diário de Lili Jaffe (1944-1945)
Autora: Noemi Jaffe
Editora 34 - 2012 (1° Edição)
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