Para uma bailarina conseguir ficar nas pontas dos pés é preciso muita prática. Sapatilha de ponta para fazer os exercícios diários. Pied a terre, pied à quart, pied sur la pointe. Abrir os braços enquanto dança. Aprender a suportar as dores nas pontas dos dedos e os calos após apresentações. Respirar fundo e confiar no companheiro que deve segurá-la nos braços enquanto pula, finalizando a coreografia. Sensibilidade e solidão para aprender a dançar.
"Viver é rasgar-se e remendar-se", já dizia Guimarães Rosa. Dançar é rasgar-se e remendar-se. Entre uma coreografia e outra, Julia Terra, protagonista do livro "Pequena Coreografia do Adeus" (Companhia das Letras, 2021), escrita por Aline Bei, busca encontrar-se para enfrentar a solidão, deixada pelo pai, e as marcas violentas de sua mãe. Pied a terre, pied à quart, pied sur la pointe. Ajustar a postura para dar o próximo passo. É proibido errar! A cada erro, a mãe violenta a castiga com suas palavras e tapas. Os machucados dos pés não são nada, curam de uma hora para outra. Violência é a única maneira encontrada pela mãe que fora abandonada por aquele que prometeu ser fiel, amá-la e respeitá-la até que a morte o separasse.
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"Pequena Coreografia do Adeus" acompanha o crescimento de Julia - da infância, passando pela adolescência até chegar, enfim, na juventude. Os passos da protagonistas lembram rapidamente de "Lago dos Cisnes", clássico do ballet. Encenada em quatro atos, a peça conta a história da princesa Odette que é aprisionada no corpo de um cisne pelo feiticeiro Von Rothbart. Vivendo no lago formado pelas lágrimas de sua mãe, como cisne, Odette se revela humana somente por algumas horas da noite. Explico melhor: até a adolescência, Julia estava aprisionada com a mãe - em vez do lago, era o cordão umbilical que nunca foi cortado. Quando conseguia fazer seus passos, se revelava uma pessoa diferente dos pais. Assim como no último livro de Elena Ferrante lançado por aqui, "A Vida Mentirosa dos Adultos" (Intrínseca, 2020), Julia enxerga quem são seus verdadeiros pais e busca, na ponta dos pés e das piruetas, uma saída para não ficar parecida com eles.
"Eu me chamo Julia Manjuba Terra e não acredito no amor. Se eu pudesse escolher, gostaria de me transformar em uma música, porque além de bonita ela desaparece quando alguém desliga o rádio. Eu também poderia ser qualquer pessoa aqui da rua ou da minha escola. Mas acho que prefiro mesmo ser música, esse negócio de sumir por um tempo deve ser o máximo."
As transformações são vistas no decorrer de cada palavra. Através da escrita, Julia descobriu que a dor pode diminuir, dando a possibilidade para o renascimento. Julia sabe que para criar a própria coreografia é preciso tropeçar, mas longe da mãe é possível errar. Julia criança/adolescente/adulta se juntam em um grande palco, como é a vida, para apresentar aos pais que consegue dançar sozinha. Pied a terre, pied à quart, pied sur la pointe.
"uma conversa em família
nunca foi possível, não na minha casa
lá somos três solitários
irreversíveis
gravemente feridos
da guerra que travamos contra nós.
ainda que meu pai não more mais com a gente,
seu fantasma está por toda parte
e flana
pelos corredores
somos
ruína e pó.
nosso jeito de conversar, diretora, é nos
machucando
não por mal, não somos maus
somos tristes e isso é o que fazemos com a
nossa solidão"
A escrita de Aline Bei não é doce, mas também não chega a ser pesada - é apenas verdadeira, crua, com calos e machucados; uma demonstração como é a vida. "Viver é rasgar-se e remendar-se", já dizia Guimarães Rosa. Através dos machucados, Julia se reconstrói, com cicatrizes, e aprende a dançar com seus fantasmas.
"sabíamos que a vida
ainda que fosse a nossa maior
ruína
era também a nossa única
salvação"
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