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Foto do escritorMichele Costa

Impressões: Ulysses

"É apenas um livro", repeti para mim mesma. "Ele não vai te engolir", avisei minha consciência. Um ano e oito meses depois, digo: o livro me engoliu. "Ulysses" (Companhia das Letras, 2012), escrito por James Joyce, é muito mais do que apenas um livro: é uma enciclopédia, um diário, uma tragédia, uma comédia, uma bíblia - eu e você. Tudo e nada. É um retrato de como funciona a mente humana: desconexa, sentimental e intensa. A obra transporta o leitor para o mundo joyciano, onde o normal não é normal.


Durante a leitura de "Ulysses", o leitor descobre que as 18 horas de "viagem" das personas são intensas. O dia de Leopold Bloom parece uma vida inteira (e talvez seja). Do acordar, se vestir e sair de casa ao enterro de um conhecido; passando pela procura do filho morto e chegando nos amantes da esposa. Enquanto isso, Stephen Dedalus, o antagonista, é um jovem que tenta acabar com a culpa de ter "matado" sua mãe. Sabendo disso, paro, por um breve momento, para aplicar a música "Birdland", de Patti Smith, presente no álbum de estreia, "Horses" (1975), para essas impressões. A canção foi inspirada no livro "A Book of Dreams" (1973) do psicanalista Wilhelm Reich, escrito por seu filho Peter, que imagina, no funeral de seu pai, partindo para outro mundo a partir de um OVNI pilotado pelo espírito de seu pai. "Birdland" é aplicada aos dois personagens masculinos de Joyce: Dedalus que busca o amor pelo pai que já o abandonou; e Bloom que ao participar do funeral, vê apenas o homem misterioso de capa preta. A canção se desenvolve enquanto o leitor avança as páginas.


"No black funeral cars, nothing except for hum the raven / And fell on his knees and looked up and cried out / No, daddy, don't leave me here alone / Take me up, daddy, to the belly of your ship / Let the ship slide open and I'll go inside of it / Where you're not a human, you are not human"


Inspirado no poema épico de Homero, "Odisseia", Joyce usa a simbologia da obra para dar vida a Bloom, Dedalus, Molly Bloom, Milly Bloom, Buck Mulligan, Martin Cunningham e tantos outros. É preciso estar atento aos mínimos detalhes, pois é ali, no sabonete que está no bolso de Bloom ou nos delírios de Dedalus após algumas doses, que conhecemos a fundo as características das personagens.


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São 18 episódios, divididos em três partes. A primeira é focada em Stephen, um jovem estudante nostálgico. Não precisamos ir muito longe, para saber que Dedalus é Telémaco, filho do herói. Se os dois primeiros episódios são fáceis, o terceiro é uma batalha. O fluxo de consciência surge e não sabemos ao certo se o estudante está na praia, relembrando de eventos passados ou imaginando o dia que terá que rever a família após a morte da mãe. Diálogos profundos são adicionados e o mar ganha diversas interpretações. Quando Joyce disse que "colocara nele [a obra] tantos enigmas e quebra-cabeças que irão manter os professores ocupados durante séculos discutindo sobre o que eu quis dizer", falava a verdade - acabou se tornando um imortal da literatura do século XX.


A segunda parte, intitulada "Odisseia", apresenta Bloom, o anti-herói que tenta ser como Ulisses, personagem principal de Homero. Porém, o protagonista é diferente: Bloom é um falastrão que contém muita lábia para ter (ou tentar, dependendo do ponto de vista) aquilo que deseja, além do toque de canalha, já que troca cartas com outra mulher, usando outra identidade. No entanto, apenas no meio da obra, descobrimos que ele é marcado por angústias: a primogênita que está crescendo longe de casa e tendo relacionamentos, o suicídio do pai, o preconceito religioso por ser judeu, a morte prematura do filho Rudy, o ruído do casamento e os amantes da esposa. Bloom passeia pelas ruas da Irlanda para justamente não lidar com essas questões e não quer pensar no encontro que Molly terá com Boylan, em sua casa, na própria cama, naquela tarde de 16 de junho de 1904.


"(...) Quero que a vida dele seja ainda dele, minha a minha. Um homem que se afoga. Seus olhos humanos clamam a mim em meio ao terror de sua morte. Eu… com ele juntos para o fundo… eu não pude salvá-la. Águas: morte amarga: perdida"

Apenas no episódio 15, intitulado "Circe" que Bloom encontra Dedalus. O relógio marca meia-noite. Stephen e Lynch entram no bordel de Bella Cohen. Ulisses e Telêmaco começam a alucinar, deixando o capítulo mais desalinhado, impactando o leitor com as visões. Tudo começa com Bloom, que delira com seus familiares e cria um mundo em que ele domina e é dominado - inclusive, o anti-herói é sádico, gosta e deseja ser castigado. Em seu mundo, é preso por desordem e submetido a julgamento, ganhando diversos nomes e se transformando o tempo todo. É interessante ver suas mudanças - o ápice é quando se transforma em uma mulher. Percebemos que ele se dedica e celebra o sexo feminino; e a partir disso, pensa em gerar uma criança no ventre inexistente (será que ele teve esse pensamento para se sentir mais perto de Rudy? Gerar um filho para sentir tudo que a esposa sentiu?). Rudy também aparece nas visões do pai que está delirando. Bloom sente falta do filho que morreu 11 dias após o nascimento.


No bordel, Stephen começa a discutir teologia, quando sua mãe "aparece" para ele. Voltemos ao início por um segundo: Dedalus acha que ele matou sua mãe por ter se recusado a rezar no leito de sua morte. Ao conversar com a mãe, tenta se desculpar e dizer que foi o câncer que a matou, não ele. Então, quando menos esperamos, Bloom salva o jovem e o retira do bordel. Na rua, Stephen é espancado após desrespeitar os soldados que passavam por ali. Mais uma vez, é Bloom que o salva. O laço paterno se inicia.


But nobody heard the boy’s cry of alarm / Nobody there ‘cept for the birds around the New England farm / And they gathered in all directions, like roses they scattered / And they were like compass grass coming together into the head / Of a shaman bouquet / Slit in his nose and all the others went shooting / And he saw the lights of traffic beckoning like the hands of Black / Grabbing at his cheeks, taking out his neck / All his limbs, everything was twisted and he said: / I won’t give up, won’t give up, don’t let me give up / I won’t give up, come here, let me go up fast / Take me up quick, take me up, up to the belly of a ship / And the ship slides open and I go inside of it where I am not human


Ao caminharem pelas ruas irlandesas durante a madrugada, dão continuidade ao laço que fora iniciado no bordel. Bloom vira o pai, enquanto Dedalus se torna o filho - Ulisses e Telêmaco se encontram após anos separados. Stephen encontra o pai que procurou no passado, enquanto Leopold revive o filho que está morto.


" - No fim das contas, eu diria que você tem a capacidade de se libertar. Você é senhor de si, ao que me parece."

A última parte da obra, "Nostros" contém os três últimos episódios da saga. Acompanhamos os dois caminharem até chegarem na casa de Bloom. Ali, na fortaleza do protagonista, vemos o anti-herói tornando-se um herói, ou seja, mostrando seus sentimentos. Explico: na gaveta da mesinha da sala contém documentos/memórias que dizem muito sobre ele; a carta de suicídio do pai, a "prova" que Molly está tendo um caso, o início do fim do casamento e memórias de Rudy, um bebê amado e desejado. Após a saída de Stephen, que não aceita o convite para passar a noite por ali, Bloom revisita todas as memórias dolorosas até se cansar e deitar ao lado da esposa. Ao deitar na cama, percebe que foi ali, onde dorme, que Molly teve relações sexuais com Boylan, um de seus amantes. O sadismo retorna: imagina o ato sexual, se frustra e se excita. Bloom quer ser castigado.


O último episódio é narrado pelo monólogo engraçado de Molly. Após verificar que o marido está dormindo, Molly reflete sobre Bloom, o encontro com Boylan, o passado, o futuro e suas esperanças. Suspeita que Bloom tenha uma amante, afinal, o casamento está por um triz. Pensa em Milly, em Stephen e em Rudy. Lembra da primeira vez que conheceu Bloom, a primeira vez dos dois, o pai morto do esposo e tantas outras coisas. No fim, Molly reafirma, porque a mulher é sempre que afirma: "Sim, eu digo sim, eu quero sim!"


"And he looked up and the rays shot / And he saw raven comin’ in / And he crawled on his back and he went up / Up up up up up up / Sha da do wop, da shaman do way, sha da do wop, da shaman do way / Sha da do wop, da shaman do way / We like birdland"


Assim como o filme "8 ½" de Federico Fellini, "Ulysses" fala sobre a nossa vida. É possível se conhecer em alguma personagem que surge no decorrer das mais de mil páginas. Não é uma leitura fácil, longe disso, complicada, angustiante e emocionante, porém, no fim das contas, valeu a pena - "Uma vida em uma noite. Aos poucos vai te mudando o caráter."


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