A bossa desiludida de Marcos Gabriel Faria e Lucas Godinho
- Michele Costa
- há 4 dias
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Quem nunca sofreu uma fossa com as músicas de Tom Jobim e João Gilberto? "Triste", canção interpretada por ambos, é um bom exemplo, visto que "triste é viver na solidão / na dor cruel de uma paixão." Vivendo desilusões amorosas, Marcos Gabriel Faria e Lucas Godinho resolveram eternizar este momento em um disco que segue os passos dos dois gênios da música brasileira, afinal, é bonito cantar uma dor.
Bossa de Icaraí reúne 10 faixas de paixões não correspondidas criadas ao lado do Rebouças, no Rio de Janeiro. A cidade maravilhosa aparece como cenário em músicas como "Bossa de Icaraí", "BK" e "Sutiã". Com isso, Marcos e Lucas recriam, à sua maneira, o universo de Tom e João em um novo tempo — com guitarra, ironia e até uma tentativa de rap em "No Meio do Oceano". "A bossa foi o que surgiu quando nos colocamos diante da nossa incapacidade de fazer bossa de João", explicam.
Os dois se conheceram durante o ensino médio, mas perderam o contato após a formatura. Anos depois, Faria - que já lançou dois álbuns, além de ser um dos fundadores e compositores do Ventilador de Teto - propôs a reaproximação a partir da ideia do álbum. Neste reencontro, assistimos dois homens remendando seus corações partidos enquanto cantam.
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Bossa de Icaraí é o oposto de Pornografia e Papel Pardo. Foi tranquilo fazer essa mudança? Aliás, esse disco só existe por conta de desilusões amorosas?
Lucas: O violão é mais natural que minha língua materna, pra mim é sempre mais fácil. Mas não participo dessa transição, então essa eu deixo para o Marcos.
Marcos: Não sei até que ponto é uma mudança, porque aqueles discos já têm essa mesma batida da mão direita e a coisa voz e violão ("Afonso Pena", "Sem Amigos" no primeiro, "Alana Haim" no segundo). Eles também têm muitas outras coisas que eu gosto. A diferença é que o Bossa é mais focado em apenas um dos tipos de músicas que eu gosto, mas ele mesmo aponta pra outras vertentes. Quanto à desilusão amorosa, pra mim isso é só um pretexto. A partir de certo ponto é preciso usar a imaginação. Eu invento minha desilusão amorosa, se for o caso.
Lucas: É uma pergunta difícil, pensar o motivo que conduz à existência das canções... Mas acredito que não. Digo, seria esse o motivo maior? Não sei. Certamente um coração partido muda tudo. Tudo ali sangra, por mais que eu tenha me esforçado para ter algo de solar no disco, não consegui. Isso eu coloco na conta das desilusões. Mas creio que, anterior a isso, havia uma vontade mútua de bossa nova. De certa forma me parecia inevitável, faríamos bossa nova com qualquer coisa que estivesse ao nosso alcance. Certamente se falássemos sobre qualquer outra coisa que não dor-de-cotovelo não seria o Bossa, mas ainda seria bossa nova.

Vocês foram amigos durante o colégio, mas perderam o contato após a formatura. Como foi o reencontro e o processo de criação de Bossa de Icaraí?
Marcos: Melhor o Godo falar disso porque dessas coisas de colégio eu não lembro muito bem.
Lucas: Minha melhor amiga foi colega de sala do Marcos na infância. Um beijo, amiga! Nessa eu e ela estávamos bebendo e reclamando da vida em um barzinho e colocamos alguma foto nossa nos stories ou algo parecido, Marcos então a respondeu. Essa é a vantagem da embriaguez, o acanhamento vai se dissipando e logo peguei o celular dela e mandei para Marcos um belo áudio mandando ele tomar no cu. Começou aí. No dia seguinte, sóbrio e de ressaca, conversamos. Tentei levantar algo do nosso passado, mas parece que Marcos tem uma grande lacuna na memória que cobre o período de nossa adolescência, da nossa amizade. Mas logo ele veio com a proposta de escrevermos um EP de bossa nova. Como podem perceber, aceitei. Quanto ao processo de criação, tudo começou com essa tentativa de revisitar esse cavo. Pra isso revivi um antigo poema, escrito na época em que ainda estávamos no colégio (que veio a se tornar a segunda faixa do disco) e dali fomos pensando o que fazer. Não funcionou como disparate de memória, mas foi um bom start criativo. O movimento foi o mesmo que nos fez amigos há mais de 10 anos atrás, escarafunchar em nossas palavras algo que parecesse minimamente bonito e dividir um com o outro. Passamos algumas semanas reunindo letras e melodias antigas, outras mais escrevendo letras e melodias novas. Mexemos numa letra aqui, uma harmonia ali e, quando nos demos conta, o que era para ser um EP já tinha dez faixas. Então que seja um disco.
"Seria estúpido pensar que eu sou João Gilberto, então a ideia é: vamos recriar esse universo da bossa dentro deste quarto, usando seja lá que ferramenta nós temos."
No release vocês confirmam que são incapazes de fazer a bossa do João, mas fizeram um disco sobre o gênero. Essa afirmação não é completamente absurda?
Lucas: Talvez seja e fico contente que vocês achem isso. Ainda assim saio em defesa da nossa incapacidade. Não quero soar auto indulgente, mas a falha me parece clara, o que não é de forma alguma um problema. Também serve como uma desculpa pra enfiarmos uma guitarra aqui e ali. Quem é que não gosta de uma guitarrinha safada?
Marcos: E não é assim que a boa arte funciona? Você rouba algo de alguém e no processo torna aquilo seu. Roubar não significa copiar ou imitar, significa adaptar ao que o seu corpo é capaz de fazer.
O que sentem quando ouvem João e Tom? A sofrência ainda os acompanha?
Marcos: eu me sinto parte da raça humana
Lucas: Assombro. A sensação é amorfa, aquela que arrebata e leva muitas sessões de análise para ganhar nome. Mas sempre belamente assombrante.
A sofrência ainda os acompanha?
Lucas: Sim. É uma constância. Não sei dizer se felizmente ou infelizmente. Se o sofrer não é paralisante acho que tá valendo.
“Bossa de Icaraí” diz que Niterói é cruel demais. Segue sendo assim?
Lucas: Tentei dar rolês em Niterói e todas as vezes fui parar no Rio. Acho que isso diz alguma coisa.
Marcos: Eu gostaria de ser lembrado como o maior hater de Niterói da História. Detesto esse ar provinciano, a coisa universitária de grupelhos de apartamento dividindo espaço com os velhos reaças de Icaraí. Todos os rolês bons de Niterói estão do outro lado da Baía. Me sinto assim sobre a cidade desde a graduação e mesmo assim sigo na UFF na pós. Devo ser masoquista.
Em “Jorgeincel” vocês cantam: “não existe nada mais bonito que um homem remendando o seu coração partido.” Sabendo que muitos homens têm dificuldades para expressar seus sentimentos, a canção - mesmo que termine com incel - pode ser considerada uma reparação histórica?
Lucas: Essa é uma boa pergunta. Em determinado momento durante as gravações eu me dei conta de que éramos dois homens reclamando da vida e confesso que, de fundo, me preocupei com quem esse disco conversaria. Um dos motivos pelos quais acredito que comecei a escrever foi para organizar esse caos afetivo que é uma vida. Obviamente isso não foi um movimento consciente, só uma tentativa de lidar com a angústia, reclamar da vida numa folha de papel. Por sorte fui lido, por mulheres e pelo Marcos. Entender que esse caos interno não é pecaminoso, que pode ser bonito, isso é libertador. Todo mundo sofre, o problema é não ter quem acolha.
Marcos: Você tem que lembrar que, se é verdade que os homens não expressam seus sentimentos, também é verdade que somos reis da autocomiseração. "Jorgeincel" é sobre isso.
"Sonic Youth" é transformada com a chegada de uma guitarra, indo além da bossa, e é uma canção que vai atrás de quem quebrou o coração. A canção alcança o seu objetivo, isto é, estar na lista do grande amor?
Marcos: A mina que serviu de inspiração pra essa minha pataquada toda foi alguém com quem eu saí só uma vez. O resto foi minha imaginação varando solta durante o ghosting. Eu genuinamente não sei dizer se ela ouviu qualquer uma dessas músicas. Provavelmente não.
Lucas: Acho que a canção nunca chega da forma que a gente espera que vá chegar. Eu fantasiei mil cenários e a realidade foi completamente distinta. Que bom que seja assim, sobra espaço pra surpresa.
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