Preste atenção nos mínimos detalhes. Olhe bem para a capa do disco; o que você vê? A mesma é ambígua, com diferentes interpretações (canos? massas? andaimes?). Agora, leia com muita atenção os títulos das canções - "Pessoa Que Fala", "Formigas Que Levantavam a Cabeça Como Cães" e "Eu Estava Lá, Em Pé" - você consegue compreender, nas entrelinhas, um toque da alienação kafkiniana? Ouça as músicas (a indicação é para ouvir no escuro - faça isso!) e me responda: o que você sente? Para concluir: consegue responder alguma questão que te fiz? Se não tiver uma resposta concreta, não se preocupe, pois "Memorandos" (Balaclava Records, 2021), terceiro álbum do duo sergipano Taco de Golfe, composta por Alexandre Damasceno (bateria) e Gabriel Galvão (guitarra) é uma eterna modificação - do mundo, de sentimentos, da realidade, da vida - sem resposta concreta.
Preciso apresentar duas informações sobre a dupla (elas são importantes para a construção deste texto e, talvez, para uma "compreensão" do álbum): Alexandre e Gabriel nasceram nos anos 90, ou seja, havia uma prosperidade econômica no país que não foi levada adiante, frustrando muitas pessoas que torciam pela redemocratização no Brasil. Além disso, a ideia de que "é preciso possuir uma casa, família, carros e um bom emprego até os 30 anos" era repetida constantemente por familiares para crianças pequenas - você passou por isso? Se sua resposta foi sim, seja bem-vinde ao grupinho - você sabe como é a sensação de crescer ouvindo que é preciso ser algo grande e a pressão para ter algo. Então, quando você cresce, percebe que o mundo não é tão fácil como diziam e que a necessidade de alcançar esse algo antes dos 30 fica para trás, porque não é possível.
A segunda informação é a saída do baixista Filipe Williams que aconteceu durante os ápices da pandemia. Com as informações dadas, imagine: passado, presente, futuro, pandemia, saída, crise econômica, sentimentos e tudo que cabe dentro do ser humano. Qual o resultado? "Memorandos", em um novo formato de banda, mistura tudo que cabe em seus integrantes. É um disco que conta com colagens sonoras que remetem a confusão, reflexo do isolamento social e da convivência diária dos músicos que passaram a viver sob o mesmo tempo durante a pandemia.
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A conversa é pelo Zoom e se inicia alguns minutos antes do horário. Um pequeno caos se inicia: carro de ovo e churros se encontram, criando uma atmosfera caótica e barulhenta - nada parecido com Taco de Golfe, porém, nas entrelinhas tem mensagens significativas. As questões começam e durante as respostas, Alexandre e Gabriel conversam entre si, dando continuidade ao improviso, como sempre fizeram.
"Memorandos" foi feito na pandemia, certo? Como que o isolamento social afetou o processo de criação e como vocês gravaram o álbum?
Gabriel: Durante a pandemia, acho que desde junho e julho, eu comecei a morar com Alexandre. A gente começou a morar junto e a gente passou grande parte dessa pandemia juntos. Estamos passando, né. O disco nasceu nesse período aí: a gente morando junto, a gente passou no edital da Lei Aldir Blanc e tipo… Antes disso a gente tava concebendo algumas ideias, tentando organizar, vendo formas de trabalhar juntos de casa… Acho que quando a gente começou a morar juntos, a gente começou a tocar juntos e aí depois a gente começou a conversar mais sobre as composições - eu fazia muita coisa no computador e mandava para ele e tals… Então, a gente passou um tempo tentando se ajustar nesse processo, tentando ver como seria essa dinâmica de trabalho, de produção e além de tudo que tava acontecendo ao redor da gente… Mas é isso: quando a gente passou nesse edital foi o gatilho do "vamos fazer agora" - daí, então, a gente aproveitou muita coisa que a gente tinha feito nesse período que a gente ficou junto. É basicamente isso, foi bem diferente dos outros pela dinâmica, agora só tem eu e Alexandre, antigamente a gente tinha um baixista e eram três pessoas discutindo, eram três pessoas para alinhar as ideias, era outro processo. Então, a gente tava ali se descobrindo, como seria a sonoridade da banda, como a gente iria abordar as ideias, enfim, uma série de coisas, foi uma época de grande aprendizado.
Alexandre: Eu diria que foi uma mistura mesmo, de tentativas, de processos de composição, porque quando Felipe tava na banda era um processo muito baseado no tocar, na jam, né. A gente detectar, os três juntos, no estúdio; ir tocando e gravar ao máximo esses processos… Aí eu lembro que em "Nó Sem Ponto II" (2020), teve situações que a gente marcou turnê, passou em um edital para tocar no Espírito Santo e tal e aí a gente meio que teve um deadline de um ou dois meses para fechar um álbum - "vamos fazer esse disco logo para viajar com o disco novo". Aí teve esse processo da gente sempre tentar se encontrar para tocar, fazendo… Eu e Gabriel, a gente se encontrava, foi pouco, mas lembro de quando fui para casa de Gabriel a gente estruturou no caderno, outras músicas foram estruturadas dessa forma - eu e Gabriel tentando formar uma estrutura e indo para o estúdio com o Filipe e tocando todo mundo junto para fazer a música. Nesse "Memorandos", agora morando juntos, foi essa coisa da gente conversar mais, como Gabriel falou, estruturar a música de uma forma mais composicional ao invés de estar lá tocando, de ver o que acontece e é isso, saca? "Memorandos" foi mais sair do improviso, mas também… Como equilibrar essas duas coisas?
Gabriel: Eu lembro que em "Memorandos" tiveram coisas que eu tive que parar para pegar porque eu não sei como é que fiz no estúdio mesmo.
Alexandre: De fato, isso acontece muito! De minha parte também, tipo assim, as baterias gravadas que saem em "Memorandos" é muito improviso… Eu passei quatro dias no estúdio e isso foi uma coisa diferente. Como falei, em "Nó Sem Ponto II", teve uma pressão… A gente meio que gravou bateria, guitarra e baixo - a bateria tudo definitiva, mas guitarra e baixo a gente gravou depois - em um final de semana. A gente gravou tudo isso em três dias, né Gabriel?
Gabriel: Foi.
Alexandre: E nesse, agora, eu tive quatro dias para gravar só a bateria. Apesar disso, o que tá lá gravado, tem muito de improviso.
Gabriel: Quando eu falei foi mais sobre "Nó Sem Ponto II", eu não organizei as minhas partes, as partes da guitarra, de uma forma que eu realmente compus. Eu criava uma estrutura, um alicerce pra gente ver no estúdio. Da minha parte, na guitarra, "Nó Sem Ponto II" foi muito mais "eu vou fazer isso, isso, isso, isso". "Cai da Escada Rindo", música do "Nó Sem Ponto II" tem uma melodia marcante que é feita pela guitarra e a melodia não tava 100% definida até a hora de gravar, sabe?
Imagino também que a convivência entre vocês dois também tenha impactado, né… Morar junto, conviver junto, em uma pandemia, ter que continuar fazendo… Foi diferente dos outros álbuns.
Alexandre: Eu diria que foi o ponto fundamental. Foi bastante difícil em alguns pontos. Essa convivência todos os dias e que a pandemia fez a gente ficar em casa… Foi um período muito doido [risos]
Gabriel: [risos] É. Eu acho que tudo pesava mais.
Justamente esse peso! Eu sinto que "Memorandos" é muito mais intenso do que os outros álbuns
Gabriel: Mais caótico, né?!
Muito mais caótico! Foi intencional, eu imagino, porque foi o que vocês estavam vivendo, foi colocado no álbum, né.
Alexandre: Teve muito disso também, ao mesmo tempo que teve um let it go, deixar ir. No final, a gente falou "vamos soltar isso como tá e é isso, vamos para a próxima".
Gabriel: É, chegou um momento em que a gente tava assim: muito tempo nas mesmas coisas… Acho que teve um momento que tipo já não fazia tanto sentido, pelo menos pra mim, ficar naquelas músicas… "Tá bom, tá pronto. Vamos fazer outro" É aquela coisa: sempre fica aquela sensação de dava para ter feito mais, dava para ter feito melhor - é normal, mas nesse caso foi tipo uma desistência, sabe?! Foi um processo bem cansativo, principalmente o processo do pós.
Alexandre: Principalmente isso. As ideias estavam bem legais, coisa que Michele falou mesmo, de transparecer essas coisas, esses sentimentos que tavam rolando… E teve esse processo de pós… A gente ficou realmente martelando em muita coisa, tentando bater de novo e aí juntou e já era tipo, digamos, era ¾ da pandemia ali e já tinha essa carga toda e a gente meio "tá, vamo soltar!".
O segundo álbum de vocês também foi lançado na pandemia, né? São dois álbuns lançados na pandemia, dois álbuns trancados em casa, sendo que vocês são uma banda ao vivo. Como que foi esse pós para dois álbuns lançados na pandemia? E como tá sendo para vocês?
Alexandre: A produção não foi, mas o lançamento, que foi em maio, foi [na pandemia].
Gabriel: Acho que "Nó Sem Ponto II" ele não pesou tanto assim nesse sentido, porque grande parte da produção dele foi no período pré-pandemia.
Alexandre: É, a gente gravou tudo e o pós dele a gente tava viajando. Eu lembro que a gente recebeu [corte na gravação], a gente tava em Recife, a gente ia tocar no [festival No Ar] Molotov e foi completamente diferente. Desse novo, ainda não conseguimos, mas a gente precisa também voltar a ensaiar… A gente tem que falar de João Mário também. João Mário é um amigo nosso, também da cena daqui, que toca em várias bandas… A gente tá dizendo que é um duo, mas a gente chamou ele pra tocar com a gente e também para produzir algumas coisas - acho que ele ajudou a produzir quatro músicas de "Memorandos". Com todo esse processo da pandemia, a gente não tava conseguindo se juntar, teve os processos dos editais também que a gente teve que gravar algumas coisas e tal, mas a gente vai retomar todo um processo de ensaio, de tocar junto, de realmente fazer o show rolar.
Acho que ano que vem já rola alguma coisa. Vocês já conseguem imaginar como será o ao vivo?
Alexandre: A gente já tá com essa perspectiva.
Gabriel: Eu tô pensando em algumas possibilidades [risos]. Penso em voltar a ensaiar nós três, eu, Alexandre e João Mário e ver como é que se dá, né. Tentar tocar as músicas, ver como é que eu posso organizar as linhas de guitarra…
Alexandre: Tem dias que eu penso em colocar outro guitarrista no show…
Gabriel: É, tô pensando nisso aí, se for necessário. Primeiro, quero tocar, né. É uma diferença interessante com os outros discos - como Alexandre falou, o processo de pré-produção dos outros se dava muito no estúdio, tocando, dando noção de como ele seria ao vivo antes de gravar - e isso foi uma coisa que não teve.
Alexandre: Pegar as músicas, ver como a gente vai tocar, como vai ser ao vivo, né. É um processo diferente, realmente.
Gabriel: Acho que é mais pelo conceito do disco, as músicas são curtas
Alexandre: Pra ser sincero, penso que no próximo show a gente toca música nova [risos].
Uma improvisação do que já foi feito, né.
Gabriel: Pensei nisso aí também.
Alexandre: Vai emendando as músicas de "Memorandos". As faixas são curtas e você pode ouvir as músicas em qualquer ordem. A gente botou o primeiro nome de "Intro", mas são músicas curtas de ideias fechadas em si que em algum momento dão a ideia de disco cheio. Diria que são músicas que funcionam para serem ouvidas separadas, cortadas.
Me chama atenção porque a primeira vez que eu ouvi, já conhecia vocês e já acompanhava o trabalho, "Memorandos" eu senti que tem uma narrativa que dá para ser cortada e quando você ouve a segunda vez, parece que essa narrativa rompe tudo e é possível ouvir o álbum com diversas interpretações, sentir várias coisas e tal. Alguma coisa foi intencional? Existe alguma explicação?
Alexandre: Acho que essa coisa cortada das faixas... Eu acho que sim, hein.
Gabriel: Acho que a ordem, as músicas... Eu fico viajando muito numa narrativa real em tudo que ouço. Eu tava no processo de escolher os nomes das músicas, fazer a ordem do disco, pensei na experiência do ouvinte ao ouvir o disco na ordem, mas o fato do disco... Tem músicas que se fecham ali e a música que vem depois, não tem nada a vê, sabe?
É um disco em camadas!
Alexandre: É como se fosse uma onda - a onda da sonoridade...
Gabriel: Total! Isso foi totalmente pensado! O disco começa num pau e vai descendo, vai descendo [faz gestos com as mãos] e vai subindo de novo. Foi basicamente isso que a gente pensou. A questão dos nomes... A verdade, os nomes eu peguei de um brainstorm de Alexandre que começou a escrever coisas relacionadas ao conceito, enfim, coisas que ele tava pensando e coisas que ele tava lendo na época - não foi, Alexandre?
Alexandre: Tem uns nomes que são citações. Foi realmente um brainstorm. Antes, os nomes das músicas iam ser números e tals; mas teve um dia que eu abri o caderno e comecei a colocar nomes. Aí no outro dia, mandei a foto [do caderno] para Gabriel e falei: "Gabriel, escolha aí!" - e foi isso.
E como rola esse processo?
Alexandre: Acho que foram dois processos nesse sentido. O primeiro, justamente, eu escrevendo os nomes, e eu não conhecia as músicas, baseado no conceito, tinha essa ideia de memorandos, a comunicação... Enfim, sistema e informações dentro de um lugar. [cortes na conversa]
Gabriel: Acho que ele tava falando sobre não conhecer as músicas, mas pensando no conceito.
Alexandre: Quando eu escrevi os nomes das músicas no caderno, eu tava pensando justamente nesse conceito mais aberto - e eu não conhecia as músicas. Eu tava pensando justamente em sistema de informação, em troca de mensagens, dentro de uma estrutura burocrática muito grande, uma coisa meio kafkiniana, essa coisa estranha, essa coisa misteriosa. Aí botei um monte de nome e aí foi Gabriel que já conhecia o som, ele botou os nomes sentindo mais essa coisa da narrativa por conta da música.
Gabriel: Eu li tanto esse papel que parecia um texto pra mim, sabe? Eu sentei chapadão e comecei a sentir [risos] coisas - o que eu sentia com as músicas e tentei construir, só que depois eu fiquei "não, não faz sentido", mas tentei construir a narrativa com esses nomes. Eu queria fazer com que as músicas fossem como um livro totalmente picotado.
As conversas e memórias continuam na conversa. Lembramos de como o tempo e as dificuldades nem existiam quando éramos criança. Frustração e ansiedade aumentam com o passar do tempo, causando um desalinho dentro da gente. Sobreviver e fugir dos padrões é a melhor ideia para continuar vivendo.
"Memorandos" está disponível em todas as plataformas de streaming de música.
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