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Foto do escritorMichele Costa

Moraes Moreira: sempre cantando

Lembro, como se fosse ontem, a primeira vez que ouvi "Acabou Chorare" (Som Livre, 1972) dos Novos Baianos. Além de ficar em choque com a potência da banda e prender o ar por conta das letras, vozes, melodias e harmonias, o álbum despertou sentimentos dentro de mim que estavam adormecidos. Lembro de terminar de ouvi-lo com lágrimas escorrendo pelas bochechas e sussurrando "é bonito demais". Talvez eu tenha soltado um "caralho", palavra de baixo calão que é aplicada quando me faltam palavras para descrever um sentimento.


Lembro também de me conectar fortemente com Moraes Moreira. Não sei explicar direito - se existiu um motivo, não me recordo; mas o homem que cantava e tocava a maioria das canções me encantou. Hoje, no presente, no dia do seu aniversário, tenho um palpite: foram os olhos! Eles diziam muito, possuíam uma alegria que nunca vi. Um carinho necessário. Alias, como é possível sentir tudo por um artista que nunca me viu e nem sabe da minha existência? É esse o papel do artista, enfeitiçar seres humanos e despertar sentimentos esquecidos? Se for assim, digo que minha alma pertence a esse grupo.


Assim como muitos artistas, o rapaz de Ituaçu, Bahia, misturou diversos gêneros musicais, como rock, samba, choro, frevo, música erudita com literatura de cordel, criando um gênero novo, impossível de rotular. Moraes mostrou que é imenso, assim como o Brasil. Mostrou também que nunca teve medo de se arriscar e apresentar novas personas. A energia que carregava dentro de si está também em suas obras. Por mais que os anos passem, Moraes continua presente e jovem, como contou seu filho, Davi Moraes, na série do Sesc 24 de Maio, "Moraes Para Sempre Moreira".


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Moraes lançou o seu primeiro disco solo em 1975 - "Moraes Moreira (1975)" - ainda quando estava nos Novos Baianos. Composto por 12 canções, o rapaz de Ituaçu, já mostrava que não estava brincando: que sabia compor, cantar sozinho e que conseguia tocar e jogar futebol. Inclusive, a música "Sempre Cantando" diz muito sobre o cantor - "Ponho o pé no caminho / Sigo cantando / Passo compasso passando vivendo / Sempre cantando / Assim como a cigarra / Que no seu canto se agarra / Não quer saber de parar / Só para quando o papo estourar / Ah! Ah! Ah! Ah! Ah!". Porém, o final da canção cai como uma luva para todos que ouvem a música: "De alegria porque sei / Que a dor não tem lugar permanente no coração de ninguém, de ninguém". Cantar para continuar.


De todos os álbuns lançados por Moraes, dois deles me impactaram: "Lá Vem o Brasil Descendo a Ladeira" (1979) e "50 Carnavais" (1997). O primeiro começa já no título, batizada (segue a lenda) por João Gilberto ao ver uma mulher descendo uma rua. Além disso, é um disco que antecipou o axé music, gênero que dancei muito na infância. E não para! Seu quarto disco é uma obra-prima, com canções bem escritas, parcerias com o poeta Abel Silva e o letrista Fausto Nilo.


Já em "50 Carnavais", Moraes compartilha, com força, seu amor pelo carnaval - e é aí que está o encanto. O pupilo de João Gilberto, que foi o primeiro artista a se apresentar em um trio elétrico, comemorou muito bem os seus 50 anos - gravando um álbum com o tema que ele mais gosta, afinal, sua carne era de carnaval. Quando a turnê do disco começou, Moraes disse em uma entrevista: "espero que o público se fantasie e tragam confete e serpentina, nós vamos comemorar". Sempre cantando.


Celebração era um ritual para o cantor. Estar no meio de gente, era o melhor meio de driblar a tristeza.



Há muitos outros motivos para gostar de Moraes e no meu caso era a alegria. Sentimento que também estava presente quando escrevia sua literatura em cordel. Em 2008, lançou o livro "A História dos Novos Baianos e Outros Versos", onde usava o cordel para contar a história da banda, curiosidades e sobre si mesmo. Inclusive, esse meio também está nos discos "A Revolta dos Ritmos" (2012) e "Ser Tão" (2018), último álbum de inéditas. Em 2015, ganhou a cadeira de número 38 da Academia Brasileira de Literatura de Cordel. Tive pouco contato com o cordel, apenas na escola, muitos anos atrás, mas voltei com a leitura por causa de Moreira. Preciso dizer: o sertão dele é bonito, rico demais.


Se tudo começou com Novos Baianos, era necessário revê-los. Em 2016, tive a oportunidade de assistir Novos Baianos no palco. Lembro de tudo, como se fosse ontem e confesso: tive o mesmo impacto quando ouvi pela primeira vez o LP deles. O público já estava sentado, os anúncios acabaram e as luzes se apagaram. Imagens do passado, do início da banda, começaram a passar. Foi assim que o choro de alegria começou a escorrer pelas bochechas. Foi uma belezura do começo ao fim. O ápice foi quando Moraes começou a dedilhar alguns acordes em seu violão e avisou que a próxima música era uma homenagem ao Mestre, João Gilberto. Então, inicia "Chega de Saudade".


Antes de falecer, Moraes publicou nas redes sociais que estava aproveitando o isolamento para escrever e tocar. Sua mente não parava nunca. Sempre cantando. Então, como um sopro, Moraes nos deixou no ano passado. De repente, sutil e antes do tempo. Lembro de chorar e desacreditar na notícia que meu irmão me dava. Hoje, se estivesse vivo, completaria 74 anos. Será que o Brasil suportaria um artista tão grandioso como Moreira? Talvez não, o Brasil está descendo a ladeira…


Antes de falecer, publicou em seu Facebook: "Nem tudo aquilo que assombra / A escuridão nos reduz / Ouvi dizer que onde há sombra / É certo que haverá luz". Onde há canção, sempre haverá luz. Moraes Moreira, continua vivo e celebrando. Continuo cantando e dançando com ele.

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