A palavra casa vai além da estrutura física de moradia: o termo pode ser associado ao corpo e à psique humano. A princípio, a casa é desenvolvida pelo outro até que o indivíduo tenha consciência do seu próprio corpo. No decorrer dos anos, o espaço vai sendo transformado a partir das vivências e necessidades. É com este conceito que O Cientista Perdido e UMZÉ apresentam o EP casa, aqui, lançado pelo selo Flwvlw dos integrantes da Tuyo.
A amizade entre Rodrigo (O Cientista Perdido) e Luiz (UMZÉ) começou online, através da Tuyo - trio que é referência para ambos. Este ano, os músicos (sob os seus projetos musicais) tocaram juntos em São Paulo e Brasília, estreitando laços; mas foi Paula Pereira Silva, produtora executiva do EP, que enxergou o potencial de um disco - assim surgiu casa, aqui.
O disco foi desenvolvido a partir de uma investigação honesta sobre o desejo de comunidade e partilha que O Cientista Perdido e UMZÉ sempre procuraram. As quatro faixas capturam o processo contínuo de se encontrar no outro e construir, em si e em conjunto, um espaço seguro e confortável para que eles e o ouvintes possam existir e pertencer com amor e sinceridade.
Para desenvolver casa, aqui, a dupla revisitou o passado para olhar o presente sem prospectar o futuro, já que esse tempo é uma incógnita para a população LGBTQIA+: segundo os dados divulgados pelo Grupo Gay da Bahia (GGB), o Brasil lidera o ranking de países que mais assassinam LGBTQIA+. Por isso, viver o aqui e o agora é importante.
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Como foi a construção dessa casa que possui confiança e de bem-estar que vocês construíram?
O Cientista Perdido: Amiga, eu não sei, se você ficar sabendo, me avisa. [risos] Esse EP, ao mesmo tempo que a gente bota muita fé no que a gente tá falando no sentido de que vivemos isso, a gente tá também construindo o nosso espaço conforme o tempo vai passando. Eu acho que a gente quis bater uma foto dessa casinha que a gente tem e que a gente criou, a gente olhou pra trás ao mesmo tempo - como uma das faixas ["a casa que me criou"] diz: "a casa que criou a gente" - para entender a referência de casa que a gente tem. Esses dias, o UMZÉ trouxe um ponto para entender essa base, ele começou a assistir a série Pose, que fala sobre a vida LGBTQIA+ nos Estados Unidos, nos anos 90, começo da cena ballroom e ela é toda feita a partir de casas, né, são várias casas, que na real são abrigos, para pessoas que foram colocadas em situação de vulnerabilidade por conta das casas que nasceram. A gente entrou nessa pira de olhar e falar "é muito intrínseco, muito queer, essa busca por um lugar que possa se sentir em casa" e aí a gente começa a cruzar nossas vivências, acho que qualquer demarcador social que seja lido como marginal e periférico, ele vai ter essa busca - seja na escola, porque você não vai andar com todo mundo; seja em casa, porque os seus pais não entendem quem você é; seja na igreja, porque eles também não entendem quem você é… Todos os lugares que a gente tá, a gente nunca tá plenamente em casa. Esses dias a gente sacou muito essa perspectiva queer do disco, de flagrar esse sentimento que é muito identitário da nossa comunidade. Quando a gente percebeu que a gente tinha isso, a gente construiu isso, achamos esse sentimento nas pessoas que estavam ao nosso redor e a gente viu que precisávamos expor isso.
Como foi revisitar as casas que vocês viveram e pensar, hoje, nas casas que vocês são e querem estar?
UMZÉ: Dor, dor, dor, dor, dor e dor. Esse rolê de consciência em saber que eu tô vivo é mais recente pra mim, tenho a plena consciência de que estou vivo e que estou vivendo aqui e agora… Sabe quando você percebe que tá vivo? Eu tenho isso agora. Quando percebemos isso, olhar o passado é, depois, se perguntar: "o que eu faço com isso que fizeram de mim?" Não existe uma manobra que eu faça que mude as coisas que aconteceram, elas já aconteceram… É olhar e [se perguntar] "o que eu faço agora?"
O Cientista Perdido: O principal refrão desse disco é: "abre o peito pra entender / que o presente é sofrer" [estrofe da canção "de passagem"]. Eu acho que a gente tem dois caminhos pra gente chegar nesse refrão: a gente pode ficar curtindo esse sofrimento, no sentido culinário da palavra - a gente vai ficar deixando isso marinar na gente - ou eu vou perceber… Se o presente é isso aqui, se eu sei que fora da minha casa, da minha válvula de escape, vai dar merda, eu vou trocar o meu olhar; eu vou olhar pra minha casa, vou saber que minha casa tá lá, sabe? Por mais que ela seja nova e que ela vai mudar - e que esteja mudando -, eu sei que agora eu posso contar com ela até quando eu me sinto fora de casa. É doido porque a gente parte desse lugar, a resposta do UMZÉ é muito amarga, a minha também é, mas esse disco é um grande exercício de não olhar para esse lugar, sabe? Perceber que a gente não merece olhar para esse lugar pelo menos uma vez, é político não olhar para esse lugar nesse momento, sabe? Se a gente for olhar para nossa história recente, é a primeira vez que a gente tá tendo o luxo [frisa a palavra] de poder se perceber politicamente como não sendo um alvo.
UMZÉ: Acho que são grandes pílulas de coragem, tipo, "crie coragem de andar pela cidade" e várias outras frases de impacto que tem nesse trabalho porque, justamente, a gente precisou [encontrar] formas de hackear o nosso dia a dia, a nossa própria cabeça, esse sistema para a gente imaginar possibilidades. Acho que olhar para a casa do passado e desenhar uma casa no presente é um espaço de privilégio também, porque você pode imaginar um presente e um futuro - muito mais um presente -, pés no chão e pés no agora, um presente de muitas coisas boas porque eu mereço. Como a gente comentou: esse disco, quem tem o alvo nas costas, demarcadores sociais e outras coisas, se identifica justamente porque a gente divide em comum essa vontade de ter um espaço de segurança, sabe?
Como vocês acham que a casa de vocês estará daqui um tempo?
O Cientista Perdido: Eu não falei que a Michele ia fazer umas perguntas assim? Eu juro que mandei mensagem pra ele falando "se prepara porque a Michele sabe o que ela tá fazendo sim." [risos] Eu vou te responder artisticamente: a gente tem encarado casa, aqui como um disco trampolim para outros lugares. Acho que a grande pergunta que esse disco deixa para o futuro é: se, agora, a gente tá em casa, o que eu posso falar agora que eu não podia antes? Acho que o que a gente prospecta dessa casa é um lugar com um pouco mais de liberdade, com menos amarras para falar algumas coisas… Os nossos próximos trabalhos têm pegadas muito diferentes do que a gente tava fazendo… Acho que antes da gente chegar com uma mensagem um pouco mais densa em relação a alguns aspectos, valia a gente comunicar isso ao público, tipo: "tipo, agora, a gente tá entrando em um lugar que você talvez ache um pouco diferente" mas a provocação que eu jogo para você é: "será que de fato as coisas estão diferentes ou você só tá acessando um negócio meu que antes você não acessava e isso tá te causando um desconforto?" Prospectando o casa, aqui para o futuro e o que a gente vai fazer daqui pra frente, ele vem pra levantar essas perguntas, sabe? Se quiser soltar das nossas mãos, o momento é agora… Ou não, fique à vontade. Saiba que daqui pra frente o que eu vou falar vem de um lugar de conforto, um lugar que estou em casa. A gente tem um público, a gente gosta desse público, o público gosta da gente, então, acho que vale dizer, sabe?
UMZÉ: Aproveitando o gancho aqui, preparar o público pra um diálogo que esse espaço não existia antes. Com esse trabalho, a gente tá conversando muito com a base que já existe - e é bizarro o sentimento de conforto que eles têm e a abertura em chamar a gente pra abrir umas coisas… É muito legal ver o pessoal se sentir confortável para falar coisas pessoais… No meu trabalho anterior [o EP Caçula (2023)], eu não tive isso, foquei mais em vender a personalidade.
Vocês falaram que tiveram espaço somente agora para ter essa casa. Como vocês se sentem sobre isso? Imagino que vocês tem muitas coisas para compartilhar e que esse sentimento estará nos próximos trabalhos.
UMZÉ: To-tal-men-te! Minha psicóloga, grande Poly, falou um negócio comigo muito louco! Quando a gente fala sobre conquistar esse espaço de casa, tanto no campo artístico quanto no pessoal, a gente luta depois da conquista o sentimento de "como eu usufruo isso?" A gente passa tanto tempo prospectando como a gente poderia usar isso quando tivermos [esse espaço], quando a gente tem, ficamos travados. Eu lutei muito tempo, por exemplo, pela questão da sexualidade em casa e tudo mais e ao partir do momento que eu consegui essa segurança psicológica e essa liberdade de ficar de boas, eu fiquei muito travado! Eu virei uma rocha, uma muralha e várias coisas… E Poly falava: "você lutou por esse direito há tanto tempo que agora que ele está em suas mãos, você não sabe nem como usar." Então, no campo da arte é a mesma coisa: a gente guardou coisas que a gente sempre quis dizer e a gente até trava no momento "como eu vou ser claro o suficiente pra falar isso?" Acho que é muito bonito, porque mesmo depois de casa, aqui, a gente se apoia muito no processo criativo de falar um para o outro como vai ser esse próximo passo, a gente transmite de maneira clara esse próximo passo.
O Cientista Perdido: Esse ano eu li Édouard Louis [mostra o livro Monique se Liberta (Todavia, 2024)] e o que a gente tem pra trabalhar é a realidade. Do que mais eu falaria? É também um exercício para olhar a realidade e saber como lidar com isso. A gente foi perceber esse sentimento de estar em casa quando o disco tava quase pronto, sabe? Não foi uma encomenda, não foi sobre isso que a gente ia falar, era um disco para trazer uns traumas… Mas esse tom mais doce do disco, de trazer outra perspectiva para isso, veio depois. Com o disco lançado, a gente tá descobrindo outras coisas porque vem a vivência de outras pessoas. Cabe a nós reinterpretar essa realidade, não trazer a realidade meramente crua, mas trazer a nossa perspectiva para ela.
Por que nos apegamos as coisas negativas e esquecemos das coisas positivas?
UMZÉ: Eu não sei, mas… Não que eu sei, mas uma coisa que eu converso muito com a Poly… Eu falo assim: "eu me preparo para o pior cenário para quando alguma coisa próxima aquilo já vier, eu fico 'eu já sabia'." Eu abraço o cacto e qualquer furo de prego não é nada! Já tô calejado, mas isso não é uma maneira legal de lidar com as coisas, não é uma maneira saudável de prever o futuro e de viver a vida.
O Cientista Perdido: Trazendo um contraponto para isso: sim, é realmente mais fácil abraçar o cacto, mas somos adultos, a gente sabe que a realidade não vai ser nenhum dos espinhos desse cacto, a realidade vai ser outra coisa. E esse é o momento de retornar para casa para conversar.
"Hoje, o que me traz paz é saber que eu tenho poucas certezas." (O Cientista Perdido)
A primeira vez que vi o conceito do disco, veio em minha cabeça aquela música infantil, "A Casa" de Vinícius de Moraes, porque vem as imagens de vocês pequenos em uma casa que vai sendo construída no decorrer dos anos. Hoje vocês firmaram essa casa e aproveitam para convidar outras pessoas a visitá-las. Como vocês se sentem?
O Cientista Perdido: Quem tá na minha casa fica de boas com o fato de que a minha casa não tem cama?! Eu tô aqui e tô mostrando a minha casa, quem tá a vontade com o fato de que essa casa não tem uma cama, mas tem dois colchões…
UMZÉ: Ele tá tão confortável que ele nem deveria ficar grilado com isso. Acho que a gente tem que mudar o significado de host… Acho que a gente é bem transparente com as nossas fragilidades e acho que é isso que causa a quebra de ciclo geracional.
Estamos falando muito de casa, inclusive, vocês compartilharam um vídeo no Instagram perguntando para as pessoas o significado de casa, mas aqui, nessa conversa, ainda não definimos o significado para vocês. Dito isso: o que é casa?
[longa pausa] O Cientista Perdido: Eu acho que casa, primeiramente, é uma conquista. Não tô falando que todas as minhas definições de casa até então não valem de nada, foram distorcidas, não, inclusive tem uma faixa do disco que fala sobre isso… "a casa que me criou" tem essa estrutura, as estrofes [abordam] a gente olhando para trás - e daí que veio a ideia da capa, inclusive - sem esquecer esses traumas, mas apesar desses traumas, perceber que essa casa que criou a gente… Acho que a grande questão dessa música é perceber que a gente tá correndo atrás disso até agora. As referências de casa que a gente tem, a gente carrega até hoje, a gente tá buscando isso, tentando achar isso - por isso a capa: a gente em casa e a cidade atrás engolindo a gente, tudo isso em uma perspectiva muito infantil também [solta um leve riso], sabe? Não infantilizada, mas infantil, sabe? Então, casa é esse negócio que eu tô procurando desde que eu me entendo por gente, que eu tô usando referências muito parecidas desde que eu me entendo por gente e percebendo isso em outros lugares. Agora, eu não moro mais com a minha família, eu moro só, mas os meus amigos estão aqui, minha família de sangue vez ou outra tá aqui e aí a gente tá botando nomes novos para as coisas, né? Família, até muito tempo, era minha mãe, agora, se eu contar com a minha mãe para uma família, ela está a mil e tantos quilômetros de distância, então, eu preciso atualizar essa questão. Talvez casa signifique me atualizar isso o tempo todo.
UMZÉ: E entra em rota de colisão com a definição de outros, né? Principalmente com os que são da nossa casa sanguínea. Pra mim, [essa questão] se expandiu mais, principalmente, porque eu estou fora de casa desde os meus 15 anos. Com 15 anos eu fui para Presidente Prudente estudar, aí voltei, aí com 17 anos fui pra faculdade, na pandemia voltei pra casa, depois da pandemia voltei pra faculdade de novo… É uma grande peregrinação. Quais são as pessoas que tão com a gente, que caminham com a gente nessa peregrinação? Quem são os nossos aliados e quem a gente suspeita? Casa talvez seja o lugar onde você corra pra não precisar sustentar tantos desconfortos.
O Cientista Perdido: Depois dessa, eu convido - quem estiver lendo esse texto - para ouvir a última canção desse disco, chamada "a casa que me criou".
Como está sendo buscar esse significado de casa aos vinte e poucos anos?
O Cientista Perdido: Eu acho que a gente não tá encontrando nada! Eu acho que a gente se flagrou enquanto perseguidor dessa questão. O grande pin que a gente coloca para lançar esse disco é que a gente se percebeu como alguém que tá buscando isso e a gente jogou isso para o mundo. A gente tem uma música chamada "nem quero saber", a gente não tá procurando as respostas definitivas para as coisas. E ainda tem isso que o UMZÉ falou: isso é muito de escolas que a gente vinha e que adoeceram a gente, ter que ter esse peso de todas as respostas o tempo todo, sabe? Eu quero ter o privilégio de não saber uma resposta. Agora, o grande x da questão é você jogar a dúvida para o pessoal e o pessoal não jogá-la de volta pra você, falar assim: "eu também não sei." O "eu também não sei" é um papo que a gente já teve… Essa vulnerabilidade também agrupa, ela traz gente que também tá nos mesmos questionamentos - que é a grande razão dos nossos projetos existirem. Nesse quesito, eu não vou dizer que eu não encontrei nada, o que eu encontrei foi que eu me percebi enquanto sujeito nesse processo de busca e tamo aí na atividade [risos].
UMZÉ: Essa percepção de buscar uma casa e como a gente encontra a casa nessa idade… Pensa que essa percepção de casa, quando você é dentro da igreja e tudo mais, ela é moldada sob uma comunidade de fé e a sua casa é esse lugar, mas você nunca se sentiu em casa nesse lugar porque você é um corpo estranho ali dentro, você se vê sempre como um erro, e aí você começa a ver o que pode mudar em você, aí você começa a mutilar o seu corpo e a sua personalidade por conta disso e aí você tem várias perguntas que eles dizem ter a resposta, mas não são respostas que te contemplam, porque eles cortam você para jogar nessas respostas e aí você se vê diante de um beco sem saída. E está sozinho encarando a parede desse beco sem saída e toda vez que você fala pra alguém "esse beco não tem saída" e eles falam "tem sim, pula ele", mas você fala que é impossível e eles falam que não… Tá entendendo? A questão do casa, aqui é olhar esse beco sem saída, que é sem saída mesmo, e falar para alguém sentar do lado e é só isso. Esse dilema filosófico talvez não tenha uma saída - olha que loucura é a vida!
O Cientista Perdido: A gente fala de trauma, mas olha que EP bonito que a gente fez! [diz sorriso e aumentando a voz] Olha que legal que a galera se colocou ali dentro, dá pra rebolar o popô também… São assuntos pesados, mas acho que a gente tá dentro dessa brincadeira toda achando formas de falar sobre eles e tomar uma cerveja depois. É desmistificar essa questão do pesado, é pesado, mas a gente lida com o pesado também de uma forma saudável, sabe? E tá tudo bem!
UMZÉ: É tipo compartilhar um meme triste com a sua amiga e dando risada da desgraça.
Na canção "casa, aqui", vocês passaram pelo passado para viver o presente, sem pensar no futuro. Como tá sendo o presente de vocês?
UMZÉ: Vou te ensinar uma técnica ancestral, minha amiga Michele, para você não olhar para o futuro: o futuro está nas suas costas e você anda para ele de costas. Você olha o seu passado, você vive no seu presente e anda de costas para o seu futuro. A única coisa que você vê é o presente se deslocando para o passado e esse grande backlog de história passando na sua frente, sabe? O que tem no futuro? Eu não sei! Eu sei que os meus pés estão no presente agora e com base nos eventos que aconteceram no passado, eu vou viver aqui no presente, entendeu? Quando a gente coloca "e o que vem do futuro eu não sei" [estrofe da canção] acho que é muito de uma escola que a gente veio em que o futuro era muito iminente, o futuro ia cair nas nossas cabeças e que a gente tinha que se preparar para esse futuro, sabe?
O Cientista Perdido: Foi muito engraçado ver você falando sobre essa questão dessa música que olha muito para o passado para chegar na conclusão que de que "e o que vem do futuro eu não sei", porque essa música, não sei se você pegou isso, poucas pessoas estão flagrando essa questão da letra, a letra dessa música - quase inteira - são referências aos nossos trabalhos: tem versos que a gente já usou em outras músicas. Eu jurava que isso ia ficar nítido, claro, evidente [faz gestos com as mãos], mas quase ninguém tá pegando isso. Quando UMZÉ diz: "contemplei tudo isso em segredo" é uma faixa dele ["Aprenda a Ouvir a Voz"]; "fui na beira do mundo e voltei" é "Queda Livre" - a gente tá realmente olhando pra isso, olhando para o que a gente já colocou no mundo, que são muitas inseguranças e, agora, a gente coloca isso no lugar de “isso não me atinge mais”, isso tá descansando, porque eu tô olhando para o presente e o que vem do futuro eu não sei.
Agora me veio à mente uma questão: vocês gostam da versão que vocês são hoje em dia após revisitar o passado e deixá-lo longe?
O Cientista Perdido: Amiga, sim. Não é porque existe um poço de autoestima pra gente mergulhar e nem nada do tipo, mas porque era babado o negócio. Se eu não sou um poço de autoestima hoje, eu já fui um poço de baixa autoestima, sabe? Na versão de hoje em dia, eu me vejo mais confortável, mais em casa. Eu tô com pessoas que me entendem e que me amam, eu tenho o meu espaço pela primeira vez, eu atingi coisas que há muitos anos eu queria e já coloquei como impossível… Então, seria muito ingrato e muito imaturo não visualizar essa parte. Vale dizer que você tá fazendo perguntas que foram sequestradas pelo lugar da autoajuda, do Instagram, do empoderamento… Porra! Não sou empoderado coisa nenhuma, não tenho poder nenhum sobre mim para além do poder de conseguir me expor, de conseguir falar sobre o que eu sou. É muito importante reconhecer um espaço de casa, de identidade, de autoestima, fora desse sequestro do coach e da superficialidade que esses assuntos tiveram. Eu acho que me sinto muito na função de tomar pra mim, pra gente, assuntos que foram sequestrados e que são seríssimos: autoestima é um assunto sério, saúde mental é assunto sério, se sentir em casa é um assunto muito sério e são assuntos que eu vejo que são tão banalizados e pior: eles são banalizados porque tem alguém lucrando em cima disso. Se é pra alguém lucrar em cima disso, que seja a galerinha que a gente tá construindo agora pra lucrar com isso daqui pra frente, porque se não tá errado.
Em "de passagem", vocês cantam: "eu me vejo no lugar de minha imagem / vi um corpo estranho pronto pra dialogar". Qual era a imagem que vocês definiram para vocês no passado e como é essa imagem nos dias de hoje?
O Cientista Perdido: Amigo, eu não me atrevo a responder essa pergunta, a música é toda sua. Vai lá!
UMZÉ: Eu ia pedir ajuda nessa, amigo, nem eu sei o que escrevi ali. Essa música é um todo, né? Mas essa parte aí… É muito complexo, mas eu acho que é muito do lugar do autoreconhecimento, me ver no lugar da minha imagem, mas qual imagem? A imagem que eles falaram que eu deveria ser? A imagem que eu penso e prospecto pra mim? "Dissociado de toda realidade / encontrando os vestígios presos no lugar" [recita uma estrofe da música] nessa busca de casa eu vou me procurando, me encontrando, pode ser uma interpretação também… Aí me vejo no lugar dessa minha imagem, me vejo nesse reflexo aí, só que ao mesmo tempo, eu vejo o contraste desse corpo estranho que tá aí pra dialogar, né? Sou eu, mas também não sou eu, pode ser o outro…
O Cientista Perdido: Essa criança que também tá aí.
UMZÉ: Teve um dia que eu tava no trem e eu olhei para o meu reflexo e eu falei "nossa, sou eu!" e aí eu fiquei me olhando um tempo e é muito louco porque o que eu tava vendo era diferente da minha cabeça, não fisicamente, mas o tempo-espaço psicológico tá muito a frente do tempo-espaço físico. Acho que isso é um bom exemplo porque mostra que esse corpo estranho está pronto para dialogar. Essa música veio todo de um descaralhamento muito grande, mas vou esperar você fazer as perguntas para eu ir respondendo soltando isso. Fala aí Cientista a sua interpretação. [muta o microfone e sorri]
O Cientista Perdido: Eu concordo.
UMZÉ: Amém.
Existem definições para o termo corpo estranho, podemos analisar pela visão de Judith Butler ou da Jup do Bairro, mas o que corpo estranho significa para vocês?
O Cientista Perdido: Esse corpo estranho é o lugar que eu me identificava que hoje eu olho como um corpo estranho, é uma coisa, uma grande substância, sabe? É uma distorção de imagem mesmo. Eu olhei para esse passado, para quem eu era e eu não me reconheci, eu vi um corpo estranho que tava querendo falar comigo, que tava querendo me falar sobre a perspectiva que esse corpo estranho do passado tinha sobre vida, sobre morte, sobre existência, sobre cosmovisão… Não adianta, eu vou ter que dialogar com ele em algum momento, até porque ele tá pronto e eu que não tô. Acho que "de passagem", que se chamava “corpo estranho” é o momento em que eu converso, que eu percebo sua influência sobre mim.
UMZÉ: Eu vou dar um de aulas de humanas, que roda um montão para poder falar de uma coisa… A forma como essa música foi escrita, ela veio de uma cadência lógica muito clara, foi muito bonitinho: verso, verso, o refrão demorou pra vir, rap e tudo mais. O eu-lírico dessa pessoa - brincadeira! [sorri] Essa música é tipo assim: o Luiz voltou do interior pra cidade dele com outro corpo, outra cabeça, outro ser; ao voltar para essa cidade que ele tinha medo, por conta das pessoas, cabeça fechada, é um bairro pequenininho, pessoal muito… Sabe? Eu vejo o que me dava mais medo - as esquinas do meu bairro, as pessoas, as congregações - não me dá mais medo, eu cresci. Eu não preciso viver mais de passagem, dando desculpas, me esquivando, sabe? Eu não preciso mais dar uma desculpa para sacrificar a minha versão antiga de mim. Quando eu chego no bairro sendo outro, outro corpo, outra pessoa, eu não preciso ficar me justificando que eu sou uma outra pessoa que se veste diferente e que fala diferente. Eu não preciso mais inventar uma desculpa para sacrificar essa mudança e quem sou no agora também, aí eu me dissosio de toda realidade e vou encontrando os vestígios presos… Apesar de eu ser outra pessoa, eu ainda não sei quem eu ainda sou por completo, eu tô buscando isso ainda - mas eu sei que eu não quero ser o que eu era antes. Nessa busca de me ver "no lugar da imagem, vi um corpo estranho pra dialogar". [recita estrofe da música]
O Cientista Perdido: É também esse outro total.
UMZÉ: Exatamente! Esse histórico de coisas que eu era contra o que eu quero ser, na minha cabeça, se confrontam no espelho para um diálogo todo dia de manhã. Quando a gente fala de corpo estranho nessa música, nesse recorte, é você se ver no passado, se ver agora e ver o que você quer prospectar, por isso que o pré-refrão é: "vou ser sincero, eu quis acelerar / fazer escolhas já tão ideais” Como eu quebro essa corrente? O refrão é a grande interpretação: “abre o peito pra entender / que o presente é sofrer", essas grandes transformações aí são grandes sofrimentos que a gente vai passando, entendeu?
O Cientista Perdido: Esse verbo sofrer a gente demoniza muito ele, né? Sofrer é estar sob ação de outra coisa, isso é sofrer! É tão estranho esse verbo porque se eu falar agora que eu estou sofrendo numa entrevista, a gente vai achar que está sendo uma merda, mas é isso que tá acontecendo: todos nós aqui estamos sofrendo um diálogo, tô ali provocando um negócio, Michele provoca outro, UMZÉ provoca outro e a gente tá aí, porque sofrer é estar sob a ação de outra pessoa ou de outro contexto. Isso é sofrer! Quando a gente entende que o presente é sofrer, eu vou entender que o presente é estar sob a ação do passado, sob a expectativa das pessoas, sob as minhas expectativas que foram geradas no passado e aí eu vou organizar isso.
UMZÉ: Nesse processo todo de você tá prospectando uma nova pessoa e lidando com essas alterações e tudo mais, eu sei que a gente tenta se esconder para se proteger desse processo que é doloroso, mas não adianta, o futuro vai chegar, ele chega por consequência, por sofrimento, é uma ação. Me custou ter que desgastar a minha vida pra caber e acabar em contextos que só machucavam, mas eu peço que você não se assuste ao me ver mudando os planos a partir de agora, porque eu nem sei desde quando você me acusa, porque o meu corpo esteve por tanto tempo nos seus tribunais que eu gastei a minha vida pensando que ao me mudar para o lugar que você me atribui… Não faz mais sentido essa dinâmica.
O Cientista Perdido: Quem disse eu tô mudando? Pra você eu tô mudando, mas pra mim não tem nenhuma novidade, eu sempre fui isso aqui, você não quis…
UMZÉ: Quando eu digo essa questão de mudança, eu digo muito na perspectiva do outro mesmo, da nossa parte é mais a coragem de assumir quem a gente é, né? Querendo ou não, ser autêntico é sustentar um desconforto, não incomodar ninguém. Talvez essa autenticidade cause raiva porque a gente bate no peito pra ter coragem de ser quem a gente é, sem precisar de desculpas, sem precisar dos arcabouços que eles usam pra poder podar a própria vida e poder caber em um lugar que eles acham que é bom pra eles.
Ao olhar no espelho vocês percebem que existe um corpo que vocês sempre quiseram. Como foi enxergá-lo e assumi-lo?
O Cientista Perdido: [solta uma risada nervosa] Eu não me vejo nesse lugar, de que esse corpo existe. Não vejo que essa plenitude foi alcançada, de novo, ainda tô no lugar de mostrar que esse corpo ainda tá em processo, ele é um corpo sem juízo - adorei que você trouxe a referência da Jup porque ela se comunica muito bem. Eu ainda não olho para o meu corpo e falo “achei o que queria”, até porque, e a gente volta em um negócio que o UMZÉ falou mais cedo, por muito tempo eu não sabia que esse corpo podia existir. A grande conquista aqui é perceber que esses corpos estão se unindo e indo para um caminho de mais conforto.
UMZÉ: São muitas camadas, mas de uma maneira geral: como a gente vai imaginar um futuro quando existem outras comunidades [que te odeiam?] Agora, em 2024, casais homoafetivos, cuidando de suas crianças é inédito pra mim! O demonstrar de uma figura, de uma representação positiva, custa a quem quer mostrar também. A gente apresenta que a gente quer chegar lá, mas não nos colocamos nesse lugar que chegamos porque ia custar muito pra gente sustentar isso.
O Cientista Perdido: Não sendo verdade.
UMZÉ: Eu acho que é muito mais legal falar: "ó, tá aqui", sabe? A gente tá nesse estado e quando estivermos em outro estado, a gente comunica de outra forma, sabe?
Agora que vocês lançaram o disco, como se sentem ao verem que quebraram paradigmas que foram ditos e determinados para vocês e que a repetição familiar ficou para trás?
O Cientista Perdido: Valeu, Elis Regina! [risos] Vou conectar com a última música ["a casa que me criou"]. Essa música veio da sensação "tá faltando alguma coisa". Até que um dia eu conversei com uma amiga sobre as nossas infâncias e percebemos isso: a gente tava olhando pra trás pra tentar descobrir alguma coisa agora. Eu tava olhando para um sentimento de muitos anos atrás e que não era real, era muito infantil para ser real… Como é que eu jogo isso para o presente? Aí veio essa música. Agora, a gente tá vendo que isso tá chegando nas pessoas, a galera tá olhando para esse disco - a galera que também tem um alvo nas costas ou que o alvo está em vários lugares – e é essa galera que a gente consegue dialogar. Esse disco é uma conquista pra gente, a gente tá celebrando isso.
Agora que vocês estabeleceram essa casa e compartilharam com outras pessoas, como se sentem?
O Cientista Perdido: Em casa, pela primeira vez em muito tempo.
UMZÉ: Concordo.
"Você queria me matar com a sua palavra e o seu fardo? Eu tô vivendo! A melhor vingança é viver." (UMZÉ)
Para a filósofa Judith Butler, o corpo precisa se constituir como uma existência palpável que acontece pela performatividade. Além disso, o gênero, para ser reconhecido como tal, necessita da referência de outros corpos do mesmo gênero. Quando essa aliança não ocorre, os corpos não são reconhecidos e respeitados por outros. Por isso, casa, aqui é tão importante: é um espaço de proteção para que todos - principalmente os mais vulneráveis - possam ser verdadeiros e construir suas próprias casas.
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