Helio,
Levo a sério o significado da palavra desalinho. Segundo o dicionário, desalinho é algo que está fora de ordem. Não é como uma bagunça - longe disso; é algo que foge dos padrões esperados (da sociedade? dos pais? do século XXI? quem sabe?) Sabe o movimento marginal? É isso! Uma mistura da poesia de Ana Cristina César e o processo criativo de Arrigo Barnabé. Digo isso, pois tenho relembrado as cartas que Pitico escreveu e recebeu em "Manual Para Sonhar de Olhos Abertos". A carta que ele escreveu para o Maestro no dia 28 de março me emociona: "Maestro, aqui as pessoas se olham nos olhos e sorriem para desconhecidos". (Talvez seja a nostalgia que me abala por estar trancada há mais de um ano. Faz falta falar, abraçar e chorar com as pessoas). Pensando nisso, escrevo em formato de carta sobre a conversa que tivemos na quinta-feira. (Eu poderia dizer entrevista, mas é muito adulto, burocrático, eca!).
Enquanto decupava o áudio, lembrei do seu livro e também de "Ulysses", de James Joyce. No episódio 14, sob o título "Gado do Sol", Leonard Bloom conhece Stephen Dedalus. Bloom, o anti-herói de Joyce, visita a senhora Purefoy que está em trabalho de parto há três dias no hospital-maternidade. Lá, ele se reúne com jovens estudantes de medicina que debatem sobre o caso - quem deveria sobreviver: a mulher ou o filho? Cruel, não é?! Bloom diz algo sobre a juventude estar (continua perdida? foi perdida alguma vez?) perdida (aqui, relembro o ponto da conversa em que digo que não me sinto mais jovem, mas você diz que sou jovem). Enquanto eles debatiam, trovões invadem a conversa, anunciando uma nova chuva em terras irlandesas. Bloom, o mais velho, que também é pai, ao ver Dedalus tremendo e com medo do barulho, conversa com ele e diz que o fenômeno é natural, uma consequência do dia a dia. Há uma transferência de pai para filho - como acontece entre Brinco e Pitico.
Em alguns momentos, há uma certa transferência de Pitico com os personagens, em busca de uma figura paterna… Você, como escritor, pode me responder se Pitico encontrou o que buscava?
Eu acho que encontrou sim. Eu entendo o seu ponto e tem umas entrelinhas que carregam isso. Eu acho que ele encontra muito isso no Brinco. Talvez… Acho que a maioria das coisas em relação a esse ponto está no Brinco. Eu acho que talvez não seja tão paterno clássico, sabe, mas uma figura paterna muito mais como uma companhia - mas é claro que esbarra nisso. Tanto que para o Geraldo, há uma tensão sexual maior, fora isso não acontece. Então, a gente já tira uma parte de Freud aí. Mas o Brinco que é o brother dele, que são super boêmios juntos, eu sinto um pouco essa presença que acho que é muito acentuada pelo fato do cara ter chegado numa cidade nova, totalmente abandonado e fisicamente machucado, emocionalmente machucado e tal… Mas eu acho que o que permeia é muito mais do que essa questão paterna é o vazio, um vazio geral. Tanto que ele vai atrás de muitos buracos que ele está carregando dentro de si para preencher… Mesmo quando as pessoas o deixam, os buracos já foram preenchidos. Ele é outro já. Parece que o papel já foi cumprido. "Vallegrand, se eu posso te deixar é porque você já me deu tudo".
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Lembremos do início da conversa, quando falamos de Belchior. Te perguntei se o bigodudo transformador (apelido carinhoso que criei para ele) aguentaria viver nos dias de hoje. Sua resposta foi: "Ele não aguentou nem antes de mudar, né. Ele já foi embora. Já fugiu antes. Ele foi o precursor da fuga, né. Precursor, inclusive, dos calotes dos bancos. Ele foi o precursor do foda-se. É bom estar aqui, mas deve ser bom também não estar". Reflito por alguns segundos sua resposta e questiono: Por que ainda estamos aqui? (Será que em algum momento da vida, vamos parar de fugir?) “Porque viver é mais fácil do que morrer”, você responde rapidamente.
Alguns segundos depois, pergunto se você consegue encontrar uma saída para o que estamos vivendo. Você diz sim e, agora, dias depois desse diálogo, penso que assim como Bloom faz com Dedalus, e Brinco com Pitico, continuemos a trajetória - como você disse: "Logicamente um lado de mim é uma revolta pura, mas eu absolvi o meu coração e aqueles que eu amo da minha revolta. Uma coisa é uma coisa, outra coisa é outra coisa. Quando eu vi que estava perdendo a minha saúde por coisas que eu não comandava e por pessoas e situações que não valiam a pena que eu perdesse a minha saúde, e isso afetava a minha vida e a minha relação com as pessoas que eu amo, eu parei para fazer um exercício para me absolver de mudar coisas que eu não posso mudar, sabe. Então, acaba sendo uma resignação de que o que é - o que é vitória no fundo, o que é derrota no fundo. O que é certo e errado? No fundo, a melatonina do coração não é tão fácil de conseguir. Mas a gente se serenizar - tô falando por mim, o meu método. Entendo que eu não vou mudar as coisas".
Tenho pensado sobre tudo e nada, morte e vida, o vazio e o completo. Desalinho. Fora dos rumos. Acho justo perguntar aos artistas sobre futuro, pandemia, morte, vida e todas essas questões existenciais, para mostrar que todos sentem e que não é necessário fugir de tudo isso. Então, quando você me diz que “viver é mais fácil do que morrer”, acredito com força, me pego nas palavras, e lembro que por mais que a vida seja complicada, dolorosa, ela é mais. Assim como você conheceu outras pessoas no decorrer de sua vida, eu também fiz isso - Pitico recentemente descobriu um novo mundo onde foi livre. Livre. Volto a lembrar de Guimarães Rosa: "Viver é etecetera". "Eu vim vencer essa etapa só pra seguir adiante".
Você começou a escrever alguns pedaços de "Manual Para Sonhar de Olhos Abertos" em 2008, em seu autoexílio, certo?
Eu tive esse autoexílio em 2004 na Bolívia e depois disso eu comecei a escrever. Eu tinha um blog, coisas muito pontuais que não se ligavam uma coisa a outra coisa. Aí eu escrevi até 2008 e parei. Apaguei o blog e tal. Aí eu nunca mais voltei nesse material. Em 2018, eu peguei esse material do blog, utilizei 5% dele no livro, mas serviu para me reconectar com esse universo do Helio da Bolívia com 18 anos de idade. Eu comecei a escrever o livro efetivamente em 2018 - talvez você tenha confundido com o autoexílio que eu tive na Itália, quando terminei por lá o livro. Eu fiquei arrumando-o até 2019 - foi quando eu realmente terminei. O livro foi escrito basicamente entre 2018 e 2020, mas ele é inspirado nesse período que eu passei na Bolívia quando eu tinha 18 anos.
E o que mudou do Helio de 18 anos para agora?
Muita coisa.
E o que é muita coisa?
Muita coisa, é muito difícil de até dizer. Ficou claro pra mim que a diferença do Helio em 2000 [há um ruído na gravação] para o Helio que escreveu o livro é irrelevante. Porque eu não sou eu. Acho que quem me conhece bem percebe muito claramente que o narrador, o Pitico, definitivamente não sou eu. Outro dia eu estava refletindo sozinho, falando assim pra mim: "Caramba, acho que o mais próximo que eu conseguiria explicar, o nascimento desse narrador, é eu contando para um cara que estava do meu lado". Em relação ao livro é irrelevante, o que eu mudei aquilo e aquele outro, talvez o que tenha relevância é como eu contaria as coisas que eu vi. Dando uma nova ênfase no ato que a gente viveu. Ou esquecendo de coisas e lembrando de outras. E isso é seletivo, mas também não. Às vezes, a gente esquece e só se dá conta depois e acho que é até o ponto da Laurie Anderson [diretora do filme “Coração de Cachorro”], mas quando eu comecei a escrever, sei lá, quando eu tava com 20% do livro escrito, caiu a ficha e eu falei "Caí na ficção!" - que delícia, que presente! E aí é a hora que eu juro para você, Michele, eu flutuei em ruas que eu nunca estive de uma maneira que eu nunca tinha feito em mais de 20 anos escrevendo canções. Foi um presente e tanto pra mim, no sentido mais puro da palavra, de eu ter prazer de novo com a arte. Eu sigo tendo prazer com o Vanguart, eu sigo tendo prazer em cantar, mas agora é um prazer novo, uma coisa que nunca…
É diferente, né?
É, eu nunca tinha diferenciado desse modo, sabe. É muito diferente, em várias instâncias. Inclusive nessa de poder esfarelar, poder fazer algo que é meu, mas que não sou eu. Isso é muito legal.
Você se incomoda ao ver as pessoas tentando entender o que é você no Vanguart, em carreira solo ou no livro? Porque, na verdade, quando eu li o livro, eu tive a certeza que Pitico é todo mundo! Todo mundo se identifica ali. Eu me vejo no Pitico diversas vezes, eu vejo meu irmão…
Eu não me incomodo, porque eu não me importo. Pode ser até arrogante dizer isso, mas eu não me importo, não faz diferença. Se alguém quiser achar… Muita gente vai achar que sou eu, não tem problema nenhum. Eu me identifico… Eu sou o Pitico em vários momentos, assim como eu sou o Brinco em outros, sou a Suzè em outros; e acho que o grande barato da ficção foi isso, foi entender algo que eu já tinha até nas canções.
Um adendo sobre o filme "Coração de Cachorro" que você citou, Helio: Em um determinado momento, Laurie aparece na tela, com o rosto desenhado por um carvão e diz: "Quando você fecha os olhos, o que você vê? Nada? Agora, abra-os". A narrativa foi alterada. Não somos mais aqueles que fomos segundos atrás. É assim o tempo todo com "Manual Para Sonhar de Olhos Abertos". Ao piscar, damos continuidade a narrativa - seja ela real ou não, que está sempre em mudança. Lembremos de seu camarada, Whitman.
Por que Whitman te impactou tanto?
É engraçado você me falar que "a arte me salvou", porque Whitman me salvou. Não é uma mentira dizer isso. Eu estava num momento… Não como eu me encontro hoje, mas um momento da minha vida muito perdido, em referências inclusive, e Whitman reforçou uma crença que eu tinha - que não me importava a forma, o que importava era a presença. Eram essas pessoas cheias de falências, cheias de humanidades - alguém que desprezava a consistência para ser consistente. Eu sempre esperei esse amigo.
Quando eu comecei a escrever o livro, eu passei por crises vaidosas: "Para quem eu estou escrevendo?" "Eu quero parecer inteligente?" "Eu quero escrever um livro inteligente?" Um livro sincero… Mas aí eu pensava: "O que é ser sincero?". Eu percebi que quando eu estivesse mais perto da minha alegria de escrever, mais próximo eu estaria do leitor, do meu leitor - e Whitman é a ponte entre tudo. A ponte entre a prática da vida, do sentimento, vida prática; a ponte entre o sentimento e a expressão poética. De modo que seja um espelho para quem está ao meu redor, não como se isso fosse o certo, mas como… Isso sou eu! Agora, qual o seu? Quando eu brinquei sobre crítica poética, é sobre isso. A maioria das pessoas que eu ouvi falar sobre Whitman, batem muito na tecla da democracia, da natureza, do papel social dele nos EUA no século XIX. Até que eu estava vendo uma mesa que tinha o Allen Ginsberg e começaram a perguntar uma palavra para definir Walt Whitman - aí perguntaram para o Ginsberg e ele disse: "Eu acho que é sobre a candura". E aquilo, pra mim… Eu falei: "É isso, exatamente!". Uma posição, um registro. Sabe quando a gente conhece uma pessoa e diz: "Ain, não lembro?!" Mas só se lembra que tinha um registro…
Como se fosse uma fotografia?
Como se fosse um adjetivo que define. Quando eu vejo a Adelia Prado falando, eu falo assim: "Que conforto! Que sensação familiar". Quando eu ouço a Hilda Hilst falando, eu penso assim: "Que conhaque! Que vontade de fumar um cigarro, tomar um conhaque e ficar... [imita rosnados] rosnando com ela para o mundo”.
Whitman é um carinho, sabe? Isso que eu tô falando não serve de grande parte para poesia, mas para algumas a gente só vai conseguir efetuar crítica assim e essa é a poesia que me interessa e essa é a poesia que eu me encontrei no Whitman que sem saber me permitiu seguir eu sendo o que eu era, que no fundo eu já tinha isso carregado em mim - tanto que eu me identifiquei com ele profundamente, mas isso que selou e endossou um caminho para dizer que eu não estou sozinho, eu não estou louco… Talvez existam pessoas como eu, talvez uma ou duas que possam se beneficiar do meu encontro com ele e que futuramente será o meu encontro com essas pessoas e que futuramente essas pessoas carregarão tanto delas e de nós e terão novos encontros e novas pessoas seguirão passando adiante tudo isso.
(Foto e vídeo: Nina Bruno)
O livro foi lançado durante a pandemia, relembrando o leitor que é possível sonhar no meio da tempestade. Foi um timing perfeito. Foi proporcional?
Não foi nada intencional, Michele. Primeiro que não é um manual, né. É um manual subjetivo. Eu me lembro que mostrei pra um amigo esse livro e ele falou: "É o título mais perfeito que ele poderia ter". Eu estava meio inseguro do título. Ele falou: "Essa Vallegrand dele não existe" e eu disse: "Claro que existe!" [risos]. Acho que o mundo do Pitico tem uma coisa muito… É um jeito que ele viu, né. Isso não quer dizer que não aconteceu tudo aquilo - acho que tudo aconteceu, até onde eu sei, eu acho que tudo aconteceu. Acho que carrega muito o exercício da gente ver as coisas como a gente quer também. Olhando agora, a Vallegrand do livro tem uma magiazinha, tem um pózinho mágico ali, em algum lugar. Não tem?
Tem vários pózinhos mágicos.
E não foi o meu objetivo, pra mim tudo era muito real. Depois eu percebi que estava sonhando.
Agora, voltando para o livro, para os personagens do livro… Alias, parabéns pelo livro. Eu não sou nenhuma crítica e nada do tipo, mas o livro tem uma construção muito boa, principalmente dos personagens. A Suzè me lembrou uma deusa da maconha, uma deusa das drogas...
[Helio ri]
Algo do tipo: "Olha, eu estou aqui, nós não seremos amantes, não somos nada, mas eu vou aliviar a sua dor"...
Um lugar elevado, né.
Será que é elevado?
Elevado humildemente, um lugar, um tipo… É a mãezinha.
Mãezinha é uma palavra muito forte [risos]
Mas é o apelido dela no bar!
Sim, mas é estranho. Me lembrou…
Edipiano?
Sim!
Nossa, zero pra mim. Nunca nem pensei sobre isso.
Bem, a minha terapia freudiana está funcionando…
Mas é muito legal você falar "deusa da maconha". Ela tem uma sabedoria muito ímpar, né.
Mas ela também é uma salvadora do tipo do amor, sabe? "Você está sentindo isso?" Eu não sei se salvadora é a palavra certa, mas talvez no sentido de uma pessoa que olha e diz: "Você está livre para sentir o que quiser. Eu posso ser o que você quiser".
Eu acho que ela é a mais bem resolvida, talvez a única personagem; ou a mais resolvida do livro enquanto ser humano, porque tá todo mundo perdido ali. Parece que todo mundo tá muito perdido. E ela carrega uma sabedoria muito alta. É engraçado pensar.. Eu não sei se pensei nesse personagem…
Eu fiz uma análise sobre Suzè com Suzanne, do Leonard Cohen. As duas estão perto do rio, são amantes… Pitico é amante de Suzè...
Caralho, eu nunca fiz essa associação. Nunca! Eu amo Suzanne, é a minha música preferida do Cohen!
Jura? Eu tô com a biografia aqui por algum lugar [procuro o kindle]
[Helio começa a cantar/recitar a música: “Suzanne, takes you down to her place near the river / You can hear the boats go by, you can spend the night beside her!"] Acho que o rio na narrativa da Suzè é muito natural, porque tudo acontece na beira do rio Cuyabá. Tem poemas para o rio inclusive.
Então, eu queria saber de você se isso tá certo ou se faz algum sentido...
Isso o que?
Essa "comparação" entre deusa e Suzè, Cohen e a história...
É muito legal você falar isso e agora no final da pergunta você perguntou se eu concordo, se está certo ou errado. É muito louco, porque hoje, quando eu penso no livro, eu sei tanto quanto você sobre ele. Então, primeiro, se tá certo ou errado eu nem poderia te dizer. O que eu posso te dizer como autor é: não pensei em Suzanne do Cohen, embora faça todo o sentido, muito incrível isso, eu adorei e agora olhando para ela, para Suzè, de fato ela é alta e ela tem uma sabedoria generosa de quem já se fodeu muito na vida - tô dizendo muito pelo que eu li. Acho que o Pitico a vê assim, como uma deusa, faz sentido. Ele até fala uma hora: "Como vários acontecimentos nos Cerrados , parecia ser um lugar elevado a outros locais" - como se deus, whatever it is, estivesse jogando as peças no tabuleiro... E sim, eu acho que a Suzè tem esse lugar e que talvez o Brinco e Geraldo sejam mais terrenos um pouco. A Suzè tem esse lugar e acho que não é porque ela é mulher, porque ele se apaixona mesmo, porque eu acho que rola uma paixão forte pelo Geraldo, meio mal vivida, mas acho que tem um lugar que é da Suzè. Tanto que na primeira aparição dela, quando ele narra a história dela. Mas sim, concordo como leitor, porque eu só sou isso também.
Outra coisa que me chamou atenção foi a Elena. O sobrenome dela é Calamus, uma parte de Whitman. Foi intencional? Por que o amor é um assunto recorrente para artistas?
Por que é tudo? Porque é a última ilusão final. A crença final.
Agora eu faço uma provocação: há vários tipos de amor - de contatinho, como dizem os jovens, de pai e mãe, de amor, de algo que seja preenchido. Sinto que a Elena é um pouco de tudo…
Olha, primeiro de tudo, acho que temos poucas informações de Elena para poder ficar falando da vida dela [risos]. O que a gente tem sobre a Elena é uma vivência dela com o Brinco, que é narrada pelo Brinco. O "Calamus" é, segundo Whitman, o galho mais duro da natureza, mais fálico, "Calamus" é isso e mesmo na etimologia, é a calamidade. Ela carrega essa coisa de transformação e tem uma passagem que fala: "Elena era grande demais para os corações de Vallegrand". Eu acho que existem pessoas para isso em nossa vida e para o Pitico é isso, foi algo muito grande, , não tem uma resposta - é muita coisa, uma força que ele não tinha naquele momento. Eu, você, Pitico, todos nós sabemos como é receber palavras, seja do Cohen, do Morissey, da Hilda Hilst, do Emicida, do Mano Brown. [Essas palavras] são importantes em vários momentos da vida e não foi diferente com ele. Quando ele encontrou Elena era tudo que ele estava precisando.
É possível fazer um paralelo entre seu livro e seu disco solo. Em "Forasteiro", temos um revólver, um rio e uma certa necessidade de se perder para, talvez, se encontrar novamente. Já em "De Onde Você Vem?", vemos questões sem respostas e uma certa devoção do trovador para um indivíduo. Ambas me lembraram do Pitico, sozinho ou ao lado de outros personagens. No momento de escrever, pensaste nisso?
Jamais, jamais pensei! Inclusive, quando você me disse: "Eu gostaria de traçar um paralelo entre o disco e o livro", eu fiquei pensando: "Que diabos ela vai traçar de paralelo?". Não há nenhum paralelo. É muito engraçado. Eu só consigo pensar em: "Como eu estou pobre nas minhas imagens poéticas, tô usando as mesmas sempre!" [risos]. É uma piada! Eu vejo como isso faz parte do meu universo. O rio, não tem como desassociar da minha vida em Cuiabá e como eu entendo o mar, são entidades, não espirituais, mas presenças na minha vida como imagem poética e o encontrar-se já esteve muito presente e hoje é uma resignação de que é a viagem que interessa, não o destino.
Uma amiga me disse que o papel do artista em tempos tristes é mostrar para todos que estamos vivendo tempos tristes, mas que ainda é possível sonhar. Você concorda?
Eu acho que mostro isso em tudo que fiz na vida. Há uma luz naquela escuridão, né. Por mais que seja desoladora, acho que há uma luz - o próprio Vanguart, em "Boa Parte de Mim Vai Embora" (Deck, 2011) tem esses momentos. A falta de esperança não saiu da caixa. O próprio livro, nos momentos mais desoladores dele… Não deve ter sido fácil sair fugido, sem conhecer ninguém, tanto que é aquilo: quando os encontros acontecem com as pessoas, os poemas são de um júbilo - eu tô apaixonado pelo simples fato de colocar os sapatos e caminhar. Aquela alegria pequena, necessária e suficiente. Alegria, simples alegria. Eu acho bonito a gente propor a não desistência.
"Eu vim vencer essa etapa só pra seguir adiante."
Você consegue sonhar?
Claro, é disso que sou feito. Não há um segundo que eu não esteja lá. É como eu costumo dizer: quando você começa a sonhar, você não está no mesmo lugar.
E com o que você sonha? Você pode dizer?
Não [risos].
As cartas que estão em "Manual Para Sonhar de Olhos Abertos" são mais curtas do que essa. Confesso que me empolguei. Mas, me justifico: a vida é complexa demais para caber em uma única página. Por aqui, as palavras continuam pesando, Helio - mas de um jeito estranho, agradeço por tê-las. Escrevo tudo aquilo que nunca consegui dizer.
Há muito mais para dizer, sempre há mais para dizer, mas encerro essa carta longa. (Como disse Voltaire: “Perdoe-me, senhora, se escrevi carta tão comprida. Não tive tempo de fazê-la curta”) Agora que venci essa etapa, avanço para outra. Será que vai ser difícil ou doloroso? Não, não pensamos nisso, apenas seguimos. Há muito mais! Vou fechando os olhos para sonhar. É preciso sonhar. Especialmente agora. O que será de nós se não imaginarmos o amanhã?
Desculpe por escrever muito e por pedir desculpas o tempo todo. Que doidera a vida é, mas é bonita. A gente segue sonhando por melhoras. Obrigada pelas palavras. Ah, preciso dizer que não levei um tiro no joelho, mas um no coração que está aquecido pelas palavras, pelos sonhos, pelos sentimentos. Obrigada.
Com carinho, da desalinhada,
M.
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