Não é possível definir o que é imagem, no entanto, existem teorias sobre o tema. Giorgio Agamben, filósofo italiano, por exemplo, define que "uma imagem, ao mesmo tempo em que torna algo visível (e visível não apenas no sentido ótico), torna algo invisível. Uma concepção de imagem baseada apenas na ideia de visibilidade não pode compreender a complexidade da imagem psíquica, que está baseada na simultaneidade, ou na abolição de sua própria inscrição no tempo." Já a analista junguiana Patricia Berry, indica que a imagem é uma complexidade de relações, uma inerência de tensões, justaposições e interconexões.
Uma coisa é certa: a imagem vai além da visão, ou seja, é possível criá-las com os nossos outros sentidos tradicionalmente conhecidos: audição, paladar, olfato e tato. Após a criação, cabe a nós estabelecer uma relação com ela, a partir de nossas vivências. Cinco anos após o lançamento de Soundtrack for Photography (2019), a produtora musical autodidata e multi-artista de origem francesa, residente no Brasil há onze anos, Sue, retorna à música com uma sonoridade própria e um trabalho consistente, com novas imagens. Em Quando Você Volta?, a artista compartilha 12 faixas instrumentais, convidando os ouvintes à observação, de si mesmos e de sua relação com o tempo, indo na contracorrente da aceleração promovida pelo mundo capitalista.
Ao diminuir o ritmo do dia a dia, conseguimos ir além do caótico: enxergamos a beleza das coisas, resgatamos sensações e relembramos que a vida vai além do capitalismo e neoliberalismo. As imagens de Sue são fotográficas que se sobressaem da realidade, por isso, impacta o ouvinte logo no início. "Acho que o meu trabalho sonoro, ele vem muito do meu olhar fotográfico: é sobre o mundo, sobre as coisas. Acho que é o lugar que eu encontro respostas que eu não consigo formular em palavras. As músicas não têm canção, não tem letra, porque as respostas são formuladas em sonoridades, né, elas são respostas em sons, em ambiências. Eu acho que a minha grande tentativa é resgatar também essa capacidade de imaginação que a gente perdeu", explica Sue.
O disco segue uma narrativa que, pouco a pouco, vai revelando o universo sonoro de Sue, entre batidas eletrônicas, samples, gravações de campo e arranjos orgânicos que bebem da música eletrônica ambiente, música abstrata, trip hop, downtempo e da composição de trilha sonora. "Muitas das estruturas das músicas nasceram de improvisos nos palcos e nas lives, e aos poucos a necessidade de ter um registro dessas canções e poder compartilhá-las se fez cada vez mais presente. Mas sendo mulher, artista e imigrante é difícil começar, imagine continuar?", comenta a artista.
Leia também:
Sue, antes da gente falar dos seus álbuns, das suas músicas, eu queria saber um pouquinho mais da sua trajetória. Você já participou de bandas e depois, em 2019, começou a sua carreira solo, né? Como que foi sair de banda, ir para essa carreira solo e agora se apresentar sozinha?
É um processo difícil, né? Acho que, como mulher, até se sentir capaz de se apresentar sozinha é um caminho das pedras. Eu digo isso com propriedade, porque eu trabalho com produção cultural também e eu acompanho outros artistas de perto, conheço outras artistas mulheres e o trabalho solo, como mulher, é um grande desafio, né? Estar sozinha no palco, assumir um trabalho musical como bom o suficiente para ser mostrado, sem o sustento de uma banda, foi algo que eu fui construindo essa confiança aos pouquinhos. A primeira banda que eu tive no Brasil foi a OZU. Eu inicialmente, eu não vou falar que não sou da música, [isso] seria mentira, porque eu sempre tive a música por perto, tive bandas em outras épocas da minha vida, mas eu sou fotógrafa de formação, então, quando eu cheguei aqui no Brasil, fazia muitos anos que eu não tinha contato com música, assim, né? Como instrumentista, tocando, demorou até 2017. Eu cheguei em 2013 e até 2017 eu não me relacionava tanto com música, eu me relacionava de um jeito mais externo, né, tipo, como espectadora ou como produtora que contratava trilhas para musicar fotografias. Eu tinha um projeto que chama The Smell of Dust, que era um projeto de projeção de fotografias com música ao vivo, onde eu chamava compositores para criarem trilhas - foi muito a partir dali que eu comecei a ter vontade de eu mesma criar as trilhas.
Por querer realmente atingir um resultado que eu, na minha comunicação, com outros produtores eu não conseguia esse resultado, era algo muito íntimo, muito pessoal, que eu acabei descobrindo que só eu fazendo, eu ia chegar lá, né, e foi assim que eu comecei a produzir música sozinha, aí eu comecei a me arriscar, a tocar de novo, mas sem me apresentar. E aí, nesse mesmo momento, acho que em 2017, a OZU surgiu e fez esse convite para mim de ser guitarrista da banda. E aprendi muito, né? Sobre dinâmica de grupo, ensaios, composição. Acho que eu fui aperfeiçoando também essa minha pesquisa sonora, né, tipo, essa minha vontade de fazer produção musical, arranjar as ideias que eu tinha. E aí, o primeiro disco que eu produzi, eu ainda estava com a OZU, né? Eu ainda era integrante da OZU. E foi o Kiko [Francisco Cabral, compositor e tecladista da banda], que era o líder da banda, que me incentivou, falando assim "as suas músicas são legais e tal, acho que sim, acho que você deveria gravar sim." Eu já estava com essa ideia, mas muito insegura. E aí, eu lancei em 2019, pouquinho antes da pandemia, e foi um baque, porque eu tinha acabado de me arriscar e falar "ok, agora eu vou tentar tocar esse disco sozinha e tal", e aí entrou a pandemia. Então, eu não tive muita oportunidade de me apresentar com esse disco [Soundtrack for Photography], de trabalhar esse disco, né? Foi, tipo, mal tinha começado, já entrou a pandemia, já entrou o confinamento, e aí começaram as lives, né? Eu ficava meio insegura também, de mostrar um trabalho que era tão fresco, com esses recursos que a gente tinha, né, tipo, computador e tal, era muito diferente de se apresentar ao vivo, tinha que aprender a parte técnica das lives, como fazer a parada soar bem e ser interessante para a pessoa se manter ali online, né? Mas, no fim, foi o que me incentivou a continuar. Apesar de não ter conseguido, assim, mostrar tanto, foi um exercício, né, eu tive que me apresentar sozinha, eu não tinha escolha, né? Eu não tinha como chamar ninguém para tocar comigo, então foi ótimo, porque foi, tipo, a vida me falando "ah, você queria fazer algo sozinha? Olha, agora…" É a única opção que você tem, é você com você mesmo, e a OZU ainda continuava, a gente, inclusive, teve bastante dificuldade para seguir, porque a gente não conseguia se ver e tal, e a carreira solo acabou sendo a possibilidade mais próxima, que fazia mais sentido. Acho que foi meio que uma coisa que foi se impondo, era uma vontade, né, já há muito tempo, de produzir as próprias músicas, de assumir a própria sonoridade, né? De assumir as próprias escolhas estéticas, os próprios arranjos, assumir uma simplicidade, também assumir os começos, né. Eu acho que é muito difícil a gente, enquanto mulheres, eu sempre falo disso de ser mulher, porque eu acho que a gente se limita muito mais do que homens no sentido. Assumir os começos, né? Assumir que o trabalho não está perfeito, que o trabalho é um trabalho de uma pessoa que está começando, mas que mesmo assim algo precisa ser dito, e que se você não começa, você não continua, entendeu? Então, que as coisas, para elas existirem, elas demandam um tempo, né, que uma carreira se constrói, que todo mundo tenha um começo de carreira, e eu acho que é isso, a pandemia me trouxe esse lugar de, tipo assim, se você não fizer, se você não tiver isso como um foco, a sua vida vai ser muito triste, né? [risos] Então, acho que eu fui me fortalecendo, numa condição que era uma condição de precariedade mesmo, imposta pela pandemia, porque eu gosto mesmo é de tocar com outras pessoas, eu gosto mesmo é de improvisação, então sempre é em contato com outros músicos, eu adoro banda, adoro tocar com banda, mas eu sei que eu sou uma artista que não toca tudo, não toca qualquer coisa, eu tenho meu universo sonoro, então eu não me considero instrumentista no sentido que eu não tocaria... Me chamam para tocar numa banda de MPB, eu não vou, não que eu não gosto, mas não é meu repertório, então acho que realmente essa coisa de estar sozinha é assumir a minha linguagem, assumir que também é isso que eu faço, é isso que eu sou, é isso que eu sei fazer, é isso que eu posso fazer e posso contribuir para vários outros projetos, mas o que eu contribui para mim é isso aqui, é isso aqui.
Esse segundo disco eu já estava mais preparada e atenta com quem eu ia trabalhar, como eu ia trabalhar, até que ponto você às vezes precisar de ajuda faz com que você deixe o outro se envolver demais e até o ponto de roubar a identidade do seu trabalho, né, nem sempre por querer, mas eu acho que por você não colocar esse limite, né, você dá muita liberdade e aí o trabalho vira outra coisa, que não é aquilo que você quis expressar. Então nesse disco eu acho que ele tem uma, talvez uma simplicidade em relação ao outro, mas porque eu coloquei o limite até onde eu alcanço, até onde eu tenho entendimento, até onde eu... Até onde isso ainda é meu, né, não que eu não quisesse que fosse um trabalho colaborativo e tudo mais, tem super, tem colaborações de outras artistas, o técnico de som que trabalhou comigo, o engenheiro de som que fez a mixagem e masterização, trouxe um monte de referências e conhecimento técnico dentro do disco, mas eu consegui manter uma identidade, eu consegui falar o que eu queria e como eu queria que o disco fosse, pra depois também poder me apresentar, né, como eu precisaria que as faixas estivessem abertas pra eu poder improvisar, pro disco não ser um disco fechado, né, pra quando eu me apresentar só ao vivo eu ter essa liberdade de improvisação que eu tenho, também quando eu crio, então é difícil, é difícil continuar porque são muitos desafios e aprendizados e eu acho que os homens nessas trocas também com mulheres que comecem a produzir, que estão querendo produzir, eles aprendem também até que ponto eles têm que opinar, até que ponto eles têm que meter a mão, assim, né, e é um respeito que a gente vai construindo.
Além do desafio que você passou e os desafios diários que mulheres artistas passam, eu acredito que também tem o desafio de você chegar em outros ouvintes também, aqueles que não estão preparados ou que nunca ouviram música instrumental, que tem uma pegada psicodélica e etc. Então, como você consegue alcançar essas pessoas que ouvem música "padrão", ou seja, com letra e tudo mais?
É, eu não sei se eu consigo, mas eu tento. [risos] [breve silêncio] Eu tentei me apresentar o máximo possível, assim, acho que antes de lançar esse segundo disco, a minha pesquisa se desenvolveu muito no ao vivo, nos palcos. Assim que a quarentena parou, a minha vontade era tocar, tocar, tocar, tocar em qualquer lugar, o máximo possível. Interagir, mostrar o que eu estava fazendo, criar com outros artistas, improvisar, eu acho que muito do meu trabalho é conhecido e reconhecido pelas minhas apresentações presenciais, né, muito mais do que no digital, no online, e ele, ele tem a possibilidade de... Eu acho que de ser ouvido também de um jeito mais simples que as lives proporcionaram, que essa coisa que eu sou beatmaker, né. Inicialmente, quando eu comecei a produzir aqui no Brasil, foi muito através da produção de beats, e de samples e tal, e acaba sendo um processo que, acho que é mais próximo do que seria um DJ, e tecnicamente não é, mas... As parafernálias, né, são parecidas, tem o disco, de onde vem o sample, né, a gente usa samplers e tudo mais, então é um setup reduzido, que me permitiu durante as lives me apresentar de um jeito mais compacto e que, que talvez se aparentasse mais a uma discotecagem, algo do tipo, e isso me abriu portas para festivais, uma cena da música eletrônica, que eu não achei que fosse se interessar tanto no meu trabalho, porque eu tenho um instrumento, né, eu tenho a guitarra... Então eu nunca pensei que, por exemplo, um festival como o Rock the Mountain fosse me chamar para tocar, é, claro que foi dentro de um contexto de uma tenda, era um contexto mais de discotecagens, mas o meu trabalho conversou com esse público, que é um público mais da música eletrônica, e que se identificou com a sonoridade, por mais que que tenha um instrumento ali, né, umas linhas de guitarra e tal, que reconheceram, assim, como uma linguagem próxima, e realmente a música eletrônica e a música minimal é uma grande influência para mim dentro do meu trabalho, né, eu acho que até mais do que a música instrumental propriamente dita, né, é uma mistura... A minha tentativa de comunicar é muito através dos conteúdos que eu crio, dos clipes atrelados ao meu trabalho, daí eu vou conquistando uma outra galera também. Eu tenho uma relação muito boa com o pessoal da dança, pelo fato de ser música instrumental, pelo fato de ser uma música com bastante texturas e ambiência, acho que ela sugere um movimento - eu acho que eu conquisto as pessoas de um jeito bem intuitivo, porque a minha vontade é sempre atingir as pessoas que têm a ver comigo, né, que têm a mesma sensibilidade, que se encontram numa sonoridade mais lenta, num som mais contemplativo. Eu não faço tanta música para dançar, então, eu acho que é um som que já atrai um tipo de pessoas que tem uma sensibilidade em comum. Acho que eu não estou muito atrás de conquistar um público que escuta canções, né, acho que, na verdade, quero atingir o máximo de pessoas possíveis, mas... Eu não sei se esse é meu foco, acho que a realização pessoal, ela tá para além da validação dos outros.
Quando eu ouvi os seus álbuns, eu senti que você trabalha muito as imagens, claro, você é fotógrafa, você traz isso com você, mas gosto de pensar também que você as mistura com o público, criando novas imagens. O que você pretende passar para o ouvinte?
[breve silêncio] Eu acho que eu quero provocar imagens, sim, acho que todo o meu trabalho sonoro, ele vem do meu olhar fotográfico, é sobre o mundo, sobre as coisas... Acho que é o lugar que eu encontro respostas que eu não consigo formular em palavras, então, as músicas não têm canção, né, não tem letra, porque as respostas são formuladas em sonoridades, né, elas são respostas em sons, em ambiências. Eu acho que a minha grande tentativa é resgatar também essa capacidade de imaginação que a gente perdeu, muito por conta da sobrecarga de informações e de imagens que as redes sociais e a internet trouxeram nas nossas vidas; e eu acho que a gente não consegue mais formular imagens ricas, imagens detalhadas, fotografias de pensamentos… Tudo é muito fluxo, e eu acho que com o meu som eu tento parar um pouco esse fluxo, né, não parar ele, mas diminuir a velocidade desse fluxo para que tivesse a possibilidade de uma leitura dessas informações. Eu gosto de falar de escutativa, o que é engraçado, porque é uma escutativa, mas ela é passiva também, porque o meu som é um som que você pode ouvir fazendo várias outras coisas, né, ele é um som ambiente, assim, ele não atrapalha uma atividade, você pode estar lendo ou fazendo qualquer atividade cotidiana e ouvir; mas eu falo de escutativa no sentido de você se atentar aos elementos que compõem a música, como se você estivesse olhando uma fotografia, como se você estivesse olhando uma imagem e se atrasando nos detalhes, né, fazendo essa leitura, do que acontece nessa imagem e o que essa imagem provoca em você, como ela interage com você. Eu acho que é isso, é uma relação bem pessoal, de sinestesia que eu tenho com o som e com as imagens, como as imagens me despertam certo tipo de sonoridades e a minha vontade sempre... O show ser essa imersão, ser essa presença das duas coisas, né, tanto que eu tô desenvolvendo agora com um artista programador a possibilidade de um show áudio reativo, com imagens do meu acervo, com minhas fotografias, que são também esse álbum - eu gosto que é álbum também, né, álbum de foto e álbum disco. Esse álbum de imagens que eu fui coletando esses 11 anos que eu tô aqui e que eu quero que estejam presentes no show, de uma forma aleatória, mas também com uma sensibilidade, né, então a gente vai trabalhar questões de frequências das faixas pra despertarem algumas imagens, né, algumas imagens representarem alguns sons e elas aparecerem conforme as frequências da música, é, então, sei lá, é, acho que, acho que eu respondi.
Quando a gente pede ajuda para um homem ou para um homem ensinar você, muitas vezes ele faz no seu lugar, ou seja, ele não te dá autonomia, ele não te ensina para você ter autonomia depois para fazer sozinha.
Enquanto você fazia Soundtrack for Photography, você tava em um período totalmente diferente, quando você o lança teve uma pandemia e eu imagino que muitas coisas também te influenciaram e que seguem influenciando foram alteradas. Então, você via imagens no passado que provavelmente não são as mesmas que seguem hoje em dia. Quais são as imagens, quais são as histórias que você pretende passar no futuro?
Você diz com esse disco ou ainda no próximo?
Com esse disco e também com o próximo.
É, eu acho que as imagens mudaram, mas não muito assim... Eu acho que até hoje as coisas que me comovem, que me atraem, que chamam minha atenção, meu olhar, né, e meu ouvido são as mesmas, mas talvez elas passaram a ganhar cor com esse disco, que eu acho que no disco anterior era muito preto e branco. Mas até hoje eu tenho fascínio pelas formações geológicas e a segmentação e esse passar do tempo é um tempo extremamente lento e ao mesmo tempo é um tempo que nos sobrevive. Então, muito das minhas imagens são a conexão entre o mineral e o sideral que liga os cosmos, o que faz com que a gente, na verdade, a gente é um grão de areia dentro do universo e as montanhas, as grutas, as pedras nos lembram dessa finitude. O meu disco continua entregando isso, né? Essa fragilidade das nossas vidas, a instabilidade das nossas emoções e a impermanência por mais que você constrói, ergue essas montanhas, o ser humano é algo totalmente da impermanência e o que sobrevive são as montanhas. [risos] Somos apenas uma passagem. A imagem que eu entrego é isso: é um convite a viver o presente. Acho que é muito um convite para viver o tempo presente [longo silêncio]. A fotografia é esse congelamento do tempo, é esse convite a pausa, a observação, a escolha de um enquadramento e eu acho que o meu disco é esse mesmo convite. Pare e se escute! Presta atenção dos detalhes, a beleza tá nas pequenas coisas. É muito essa imagem que quero trazer, de uma beleza no simples, uma presença mais analógica, uma coisa de mais estar juntos - é meio cafona, mas é meio que é isso. E acho que as palavras do futuro, que eu gostaria de entregar, são imagens do passado. Eu acho que o passado, por mais que na psicanálise [tenha] a ideia é que você se livre do passado [risos] e que você siga vivendo as possibilidades do presente e do futuro, eu acho que o que pode salvar as nossas vidas e o nosso mundo é a gente olhar para o passado, olhar para nossa memória, olhar com um certo cuidado para o tempo, uma certa relação com o presente, com o tempo e com as pessoas que tá se perdendo, né, tá cada vez mais morrendo - acho que a gente tá morrendo. O [Ailton] Krenak - ele representando a comunidade indígena - apresenta a cosmovisão da população indígena, mostrando que o homem branco é um homem cego que parou de ver e eu acho que a gente é isso, parou de ver, de ouvir, de se falar e de se escutar. Pra mim tá muito claro que a gente precisa parar de progredir o tempo todo, esse progresso sem freio é o fim da nossa era e a gente precisa muito olhar para as imagens do passado pra gente se lembrar que a gente tá perdendo, tá destruindo e tá deixando de preservar e de alimentar como conexões, enfim, como o mundo. Acho que aqui tá bom, né?
Vamos ficar aqui!
Vamos ficar aqui! [eleva um pouco a voz] Vamos tentar manter o que a gente tem aqui, vamos preservar o que já foi feito, vamos tentar ter esse cuidado porque… Não sei se é só eu, mas eu não enxergo o futuro. Eu penso em como será daqui dez anos, mas não enxergo nada! O máximo que eu consigo enxergar é daqui a pouquinho, o amanhã, daqui um mês, mas o futuro eu não consigo mais enxergar. Acho que a pandemia foi muito esse soco na cara, tipo "não tem futuro", se a gente continuar assim não tem futuro. Tristemente a pandemia acabou e tudo voltou no mesmo ritmo, nessa mesma corrida desenfreada do capitalismo, que é uma corrida para o nosso próprio fim - eu só vejo a imagem de um vazio. Uma não imagem, não existe uma imagem de um futuro.
Em Sobre a Fotografia (Companhia das Letras, 2004), Susan Sontag aborda as alterações que a sociedade passou a partir das imagens. Segundo a escritora "uma sociedade capitalista requer uma cultura com base em imagens. Precisa fornecer grande quantidade de entretenimento a fim de estimular o consumo e anestesiar as feridas de classe, de raça e de sexo." Ao aplicar essa afirmação nos dias de hoje, chegamos à conclusão que o consumo de imagens faz parte em nossas vidas há muito tempo, consequência da ágil modernização. Quando Sontag diz que, nos anos 70, "as pessoas de países industrializados procuram ser fotografadas - sentem que são imagens e que as fotos as tornam reais", ela se assustaria com o presente. Atualmente o indivíduo perdeu o espaço para a imagem que é postada nas redes sociais, esquecendo a experiência e sensações.
Quando Você Volta? vai completamente contra essa correnteza de modernização. Você convida o ouvinte a observar as pequenas coisas, como você disse anteriormente. Gostaria de saber quais foram as suas observações que influenciaram neste disco e se elas continuam com você até hoje.
[longo silêncio, olha para o lado] Muito do meu trabalho fotográfico sempre me inspira a criar música, acho que ao observar a minha relação com a minha família com essa distância física que a gente tem há onze anos que moro aqui… Eu precisei me contentar com as pequenas coisas, com pequenas mensagens, pequenas palavras, pequenas cartas, pequenas imagens enviadas em dias importantes ou em momentos difíceis, essas foram e são as coisas que me mantém, que me ajudam a seguir no meu propósito. Às vezes é engraçado porque as duas únicas formas de presença que você tem quando você está longe são o som e a imagem. Eu observo muito o tempo como um estado físico do tempo, como a chuva, o vento, o calor e o frio; todas essas coisas que eu trago [estão] no meu som. Eu faço muita gravação de campo, a minha observação do presente tá no meu disco como gravação de campo… Eu gosto muito de usar gravação de campo porque traz automaticamente uma ambiência, uma temporalidade e uma materialidade do som. A gravação de campo, quando você joga ela em um projeto de música, pode atrapalhar muito se você não souber usar ela, né, porque ela vai trazer toda a ambiência - por exemplo, se você grava na rua, vem os ruídos dos carros, o movimento, vem o som de um ambiente aberto; se você grava em casa, você vai ter o som dos passos da pessoa que tá andando -, são fotografias sonoras que eu gosto de usar tanto como impulsos criativos, quanto como limitações que eu acho que essa tentativa de fazer com pouco, de fazer com o que tem. Acho que observo muito o meu cotidiano, meu entorno, minha relação com as pessoas, como me relaciono e como me expresso no mundo com essa grande dificuldade que eu tenho como pessoa, mas que tá ali artisticamente - é onde eu não consigo falar, ela tá lá. Tudo que eu não consegui dizer tá nessa música. [risos] É muito difícil falar do próprio trabalho, fazer esse tal de release explicando o porquê de você ter feito aquilo, acho que hoje em dia é tudo muito intelectualizado, tudo tem um porquê das coisas existirem e serem feitas… Isso poda muito a criatividade das pessoas porque nem tudo tem um porquê e acho que as coisas mais bonitas, que nos comovem, são coisas que a gente não consegue explicar.
Quando eu ouvi Quando Você Volta?, não sei se você teve essa impressão pós-pandemia, mas pra mim tudo ganhou uma nova intensidade. Então, estar com meus amigos, estar com as pessoas que eu gosto enche o meu coração de uma felicidade que antes eu não tinha noção. Acho que esse afastamento durante a pandemia e o medo de morrer aumentou essa intensidade. A música "Gigantesca" faz uma homenagem às mulheres e é claro que sabemos que as mulheres são tudo, mas quando se ouve ela ganha uma nova proporção. Você acha que o pós-pandemia causou esse impacto para ver, ao ver as mulheres - conhecidas ou não - hoje?
Eu acho que a pandemia trouxe uma noção de fragilidade maior da nossa condição e, com certeza, a partir do momento que a gente pode voltar com uma vida livre - acho que o que foi mais marcante nessa pandemia foi essa questão de não poder ir e vir - a gente despertou uma maior vontade de proximidade, de maior cuidado com os nossos familiares e amigos. Em relação às mulheres, eu acho que as mulheres sempre tiveram uma luta para conquistar seus direitos, para conquistar igualdade, né, a gente nem quer ser igual aos homens, a gente só quer ter os mesmos salários, os mesmos direitos, as mesmas condições, a mesma autoestima e a mesma sensação de segurança… Eu acho que a pandemia não teve necessariamente um impacto sobre isso, mas os movimentos feministas, a maior circulação de informação, o surgimento de mais mulheres dentro da arte, em lugares de mais destaques, mais artistas solos, mais mulher palhaça, mais mulheres na política, mais grupos feministas fazendo trabalho social, mais denúncias de abusos e violências, igual o movimento #MeToo… A quantidade de morte de mulheres que teve na pandemia devido o confinamento que estavam 24h por dia com o parceiro violento ou tóxico, aumentou muito a taxa de feminicídio… A pandemia também fez uns estragos com as mulheres que, sim, a consequência foi a revolta e está sendo… Como a gente evita isso? A ideia não é nem evitar, é aniquilar! Acho que quanto mais as mulheres falam, outras mulheres se sentem à vontade para falar. O machista mata um monte de homens também… Acho que a maior dificuldade é fazer com que homens escutem literalmente mulheres. A gente vive o mundo dos homens, não vivemos o mundo das mulheres.
Você não consegue visualizar um futuro, como disse anteriormente, mas consegue visualizar um presente. Como será o seu futuro-presente?
O meu futuro-presente não é egocêntrico, ele é baseado na troca. Apesar de partir de um autorretrato, de uma leitura subjetiva do mundo, de como eu olho o mundo, ele só é possível e só faz sentido se ele é numa dinâmica de troca, ou seja, se tem pessoas que estão ouvindo, se existem pessoas que estão se identificando nisso, se fortalecendo nisso.
Por mais que você esteja trabalhando com o seu nome e com o seu rosto, sempre tem músicos tocando com você, no final, você nunca está sozinha.
E nem é possível!
Sim! Como é essa troca?
Essa troca foi muito natural com todas as pessoas que já participaram dos meus discos. Sempre são pessoas próximas e que se identificaram com o meu som. Especificamente neste disco [Quando Você Volta?], tem a participação da Desirée Marantes que é uma violinista que eu fiz uma residência no passado, no Centro da Terra, a gente já se conhecia, mas a gente nunca tinha tocado juntas. Quando o Alexandre Matias, curador do Centro da Terra, me chamou para fazer a temporada lá, ele falou "vamos fazer vocês duas" e foi um convite inesperado e que tinha tudo a ver e era meio natural a Desirée entrar no meu disco de alguma forma. E a Dharma eu conheci no festival Index e quando vi uma performance dela, fiquei impactada. Aí convidei a Dharma para uma série de shows em São Paulo, ela participou de um festival comigo e foi muito fácil a troca, muito generosa. Peguei a oportunidade que ela tava vindo para São Paulo para essa residência e aproveitei para convidar; gravamos diversas faixas, inclusive tem uma faixa que só vai sair depois. Foi tudo muito fluido no sentido de que a gente se identificou como mulheres que criam improvisando, a gente não cria num pensamento estruturado. Tanto eu, quanto Desirée e Dharma, a gente cria criando, vai tocando, vai tocando, vai tocando e vai gravando, gravando, gravando e as músicas vão surgindo muito fluída, de um fluxo.
Achei muito interessante a história que está por trás do título do seu álbum. Por mais que você não esteja na sua terra, propriamente dita, a sua música traz os lugares que você passou. Te pergunto: pra onde você quer ir?
[breve silêncio, em seguida, dá um suspiro] Eu acho que eu ainda quero descobrir muitas coisas. Pra onde eu quero ir? Acho que a grande busca de todos nós é a gente se encontrar, né. Acho que eu quero ir até me encontrar, acho que não volto até me encontrar. Na verdade, o Quando Você Volta? é voltar pra onde? Às vezes, acho que é um voltar para si, a gente se perde muito, né? O mundo contemporâneo nos distancia muitas vezes dos nossos propósitos… Ac ho que esse disco é uma tentativa de respostas tanto pra minha família, pra quem tá longe e para quem sempre me pergunto, mas ela também é uma pergunta que eu me faço: quando você volta para você? É uma busca eterna.
Quando Você Volta? é um autorretrato em câmera lenta que vai se desmanchando, abrindo as fendas e mostrando os desafios da vida como ela é, nua e crua, uma montagem de cenas, por vezes aleatórias, para terminar num belo travelling com final suspenso, que nem filme francês. Uma imagem possível ou impossível. O título do disco remete à pergunta que a artista mais ouviu desde que mora no Brasil.
Ficha técnica de Quando Você Volta?, de Sue
Produção musical – Sue
Composições, beats & arranjos – Sue
Assistente de produção – Renan Vasconcelos
Mixagem & Masterização - Matheus Câmara / Entropia
Gravado em home studio em São Paulo, salvo os sopros, gravados no estúdio de Desirée Marantes.
Sintetizador em “Pulse” gravado por Desirée Marantes
Flauta e voz em “First Steps” gravadas por Dharma Jhaz
Saxofone em “Alias” gravado por Dharma Jhaz
Fotos de divulgação - Júlia Milward
Figurino - Dafny Bittencourt
Direção criativa - Sue
Arte de capa & diagramação - Sue
Comments