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Foto do escritorMichele Costa

Os Nordestes de Juliana Linhares

"Do abraço forte / Do reconfortar / Rainha de tudo que quero / Rainha de tudo que há / E não quero ir para Marte / Quero ir para o Ceará / Não vim aqui me exibir / Eu vim aqui te buscar", canta Juliana Linhares em "Bombinha", música que abre "Nordeste Ficção", lançado no final de março, no ápice da pandemia. A cantora lembra que não é necessário ir ao Nordeste, ela convida o ouvinte a conhecer sua região através de seu álbum, de acordo com suas narrativas. Segure sua mão e deixe que ela apresente sua ficção.


A história começa na capa do disco. Segurando um lampião de querosene, objeto recorrente da literatura brasileira dos séculos XIX e XX, e vestindo um sobretudo, que lembra uma capa, Juliana lembra uma personagem que veio do Nordeste para salvar sua população. Seria Lampião? Afinal, ele é o personagem que ganhou destaque por lá. , o local que não conhecemos e julgamos, opinamos, a partir de informações de outros. A arte da capa também mistura com as diversas personalidades que a artista, que também é atriz, já retratou em peças de teatro. O clímax fica por conta do texto que foi retirado de "A Invenção do Nordeste e Outras Artes", de Durval Muniz de Albuquerque Júnior.


Publicado em 1999, a obra do Dr. Durval Muniz busca respostas para questões imaginárias sobre o Nordeste. Juliana completa com a faixa-título: "Lugar hostil de gente tão pacífica / Nordeste ficção científica / É pobre, é seca, é criança raquítica / Nordeste invenção científica".


Juliana saiu de Natal para viver no Rio de Janeiro em 2010. Na cidade do Cristo Redentor, a cantora passou a ouvir comentários estereotipados de diversas pessoas. Xenofobia. Juliana questionou o significado do nordestino nos dias de hoje, afinal, o Nordeste é muito mais do que seca, fome, mortes, doenças. Como dizem os jovens de hoje em dia: foi ali, naquela região, que o Brasil deu certo.


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Você faz parte da banda Pietá, do projeto Iara Iara e é atriz. As diferentes vivências artísticas contribuíram para a construção da sua carreira solo?

Com certeza! Muito, na verdade. Eu me fiz cantora profissional com Pietá. Pietá me deu uma pesquisa de autoridade. A partir das canções autorais, eu pude olhar pra minha voz… É muito interessante isso, quando você é intérprete de canções. Digamos que… Em Natal, eu cantava Vinicius de Moraes; a minha voz por mais que tenha personalidade, ela tá dando voz a um cancioneiro, digamos assim, que já foi cantado por muita gente importante. Ouvi uma versão de Maria Bethânia que vai ser muito mais inesquecível do que na minha voz [risos]. Mas a partir do momento que você começa a cantar músicas que nunca foram cantadas, a sua voz começa a ser ouvida de uma forma diferente - e isso me deu muita coisa! Eu mesma passei a ouvir a minha própria voz e a entender como ela poderia ter mais força, mais personalidade… Como a minha voz poderia dizer mais ao cantar. Pietá me deu tudo e além disso, a vivência do palco. E Iara Iara também me deu mais uma vivência de cantar assim, com outras artistas no mesmo palco; dividir canções como intérprete, escolha de repertório conjunta… Dois trabalhos muito coletivos que fazem parte da minha trajetória. Eu pude estar em muitos palcos por causa desses trabalhos. A minha maturidade como artista vem muito desses dois espaços para chegar na carreira solo entendendo mais quem eu sou a partir das experiências. Com certeza uma grande contribuição.


No ano passado, você lançou o EP "Perdendo o Juízo". Quais são as mudanças/transformações que você passou para criar e lançar "Nordeste Ficção"?

Quando eu comecei a compor, eu não pensava exatamente no que eu queria. "Ah, vou compor para esse disco". Eu comecei a criar canções, deixar as coisas saírem de mim, tanto vocalmente criando melodias, tanto no violão desenhando alguns acordes, quanto as letras - coisas escritas que já tinha, fui guardando, mexendo e tal. Então, durante a pandemia surgiu a vontade de fazer o disco e no meio de tudo isso, veio o convite de participar do lançamentos dos EPs [criado pela Aceleradora Pólen, criado e voltado para mulheres] do Rio Grande do Norte - eu achei que não deveria dizer não, né. Eu sempre quis estar junto das pessoas do meu lugar, da minha terra e era um lançamento muito especial de mulheres na música e eu achei que seria um grande aprendizado e foi. Eu montei uma equipe, eu produzi muito, né… Eu montei uma equipe de muitas mulheres, eu gerenciei tudo isso, eu entendi todo o processo de gravação - claro que eu já tinha feito isso com Pietá e Iara Iara, mas foi muito concentrado em mim, então foi diferente mesmo. Eu realmente gerenciei uma parada que me fez chegar no processo de "Nordeste Ficção" com mais preparo, com mais paciência, menos ansiedade, entendendo o que as coisas são, passo a passo… E outra, trocando mais como compositora, me fortalecendo como compositora. Ter lançado o EP "Perdendo o Juízo" com três canções minhas e parcerias, fez com que eu me sentisse mais firme para lançar canções minhas em "Nordeste Ficção". Eu acho que me tornei uma pessoa um pouco menos ansiosa, mais segura e principalmente, eu nasci como compositora - essa pra mim é a grande transformação desse trabalho de agora. Juliana, compositora, no mundo.


Em "Conheço o Meu Lugar", Belchior canta: "Ninguém é gente / Nordeste é uma ficção / Nordeste nunca houve", contestando as falas estereotipadas. O que é, o que significa e o que representa o Nordeste para você? Inclusive, o que podemos aprender com o seu álbum?

Eu acho que o Nordeste pra mim não é uma coisa só e foi isso que eu quis trazer no disco. Quando inventa-se uma região e coloca-se uma fronteira e um nome nessa região e a partir daí essa região é uma coisa só, a ficção vem daí também, né. As fronteiras são criações geopolíticas, não são naturais, elas são criações do homem, criações e escolhas políticas da humanidade, não é uma ficção. A partir do momento que você determina que aquele lugar é uma coisa só, parece que todo mundo é igual. Parece que a região se unifica em determinadas representações estereotipadas. Eu acho que o Nordeste pra mim não existe, existem Nordestes, muitos, vários! E era isso que eu queria trazer no disco.


"Nordeste Ficção" conta com diversos elementos musicais, que me fizeram relembrar Elba Ramalho, Tom Zé e Alceu Valença. Como foi a construção do álbum? Foi intencional abordar e trazer referências de grandes artistas brasileiros?

O álbum, a gente tinha um desejo, a princípio, eu achei que eu ia conseguir fazer um álbum ao vivo, gravado ao vivo com a banda toda em estúdio, mas por causa da pandemia, a gente achou mais seguro fazer a distância. Então, o álbum foi pensado todo a distância, gravado todo em home studio, os músicos e as musicistas, todo mundo que participou, gravou de casa e foi mandando. Isso fez com que o álbum ficasse muito mais múltiplo, no sentido de ter gente gravando de vários lugares - até do mundo - e de ter muitos instrumentistas diferentes em cada faixa, já que a gente não teve que gravar de uma vez só, né. Então, a gente abriu um pouco a cabeça para pensar que cada faixa poderia trazer um universo - isso tinha a ver também com o disco, de mostrar multiplicidade, pluralidade em relação ao Nordeste. Eu acho que parte muito com Marcus Preto [diretor artístico] e Elisio Freitas [produtor] nessas grandes referências de musicistas e compositores nordestinos, Elba, Amelinha, Cátia de França, Alceu, Zé Ramalho… O pessoal do Ceará, Belchior, Ednardo, toda essa galera foi uma influência muito poderosa para o disco. Sempre que eu pensava em fazer alguma coisa com a minha voz, eu me lembrava, sentia a energia de Alceu, dos anos 70 e eu tinha muita vontade de resgatar aquilo em mim e ver o que ia dar. Então, eu mergulhei sim nessa obra, a gente pensou muito, ouviu muito e resolveu que isso seria uma grande referência para o trabalho.


Seu álbum foi lançado durante a pandemia. Como foi para você trabalhar durante esse período conturbado, lançá-lo e não poder apresentar do modo que você deseja?

Foi bem difícil. A princípio, no início da pandemia, eu me senti muito perdida, muito desesperançosa com a questão toda, política, econômica e de saúde, que a gente tá enfrentando em nosso país e no mundo. Eu fiquei muito desanimada porque a previsão era muito dura para todo mundo, principalmente para os artistas. Mas em um determinado momento, eu entendi que esse fazer artístico é o que dá vida a gente, dentro de uma pandemia principalmente. A arte desloca o olhar da realidade para uma outra realidade possível - uma realidade que é inventada para que a gente consiga ter mais poesia, mais humanidade, mais amor e colocando essa camada de ficção em cima da vida, assim como eu quis colocar em cima do Nordeste. Às vezes, a gente consegue ter mais qualidade de saúde mental e de vontade de viver mesmo, mais desejo, né.

Então, no início, eu fiquei perdida até o momento que decidi que faria o disco para me ajudar, para passar os meus dias, a criar uma rotina interessante pra mim que me fizesse conectar com pessoas, que me fizesse também criar, botar a minha cabeça em um lugar criativo… Aí o disco foi nascendo durante a pandemia inteira, como falei anteriormente, eu tinha pensado sim que eu faria um disco ao vivo, né, com pessoas juntas gravando, com o calor da presença e em determinado momento a gente entendeu que não - então isso muito doido e ao mesmo tempo foi maravilhoso porque a gente conectou pessoas de muitos lugares, o disco é muito aberto nesse sentido, sabe? Tem pessoas de Natal, de Portugal, dos Estados Unidos, de São Paulo, do Rio… Talvez isso não pudesse acontecer em outra situação, então foi muito interessante, um ponto de partida novo para música, essa coisa de fazer tudo a distância. A partir de agora, a gente vai conseguir produzir dessa maneira e cada vez mais também. Claro que eu quero muito voltar ao encontro presencial [risos], mas, assim, eu sinto que por mais que não seja o melhor momento para se lançar um disco, se eu não tivesse feito o disco nesse momento da minha vida, talvez eu estaria muito mais triste, mais desanimada, mais desamparada de mim mesma, sabe?! Então, acho que o disco foi uma coisa que salvou a minha saúde nos últimos tempos. Por mais difícil que seja me lançar, eu não imagino sem lançar, porque eu acho que… Não é só pelo outro, é pra mim também - e pra mim foi importante lançar nesse momento, porque me deu vida, me deu alegria, alguma esperança de futuro.


"Meu Amor Afinal de Contas" foi o single para apresentar a carreira solo de Juliana. Ao lado de Zeca Baleiro, que musicou a letra, a artista encarna duas personalidades de uma só pessoa que busca amenizar o vazio de uma vida sem poesia. Inclusive, é possível viver sem poesia? Sem arte? Sem música? Não, não é - e Juliana Linhares sabe bem disso: em 2018, a cantora pegou uma laringotraqueíte e ficou sem voz por uma semana. Uma artista sem voz não vive, não existe. A crise existencial aparece e a necessidade de compreender suas angústias ganha espaço. Será que as canções de "Nordeste Ficção” foram escritas durante esse momento?




Zeca Baleiro, Letrux, Chico César e Tom Zé estão em "Nordeste Ficção". Como foi a escolha e a experiência de trabalhar com esses artistas?

Chico e Zeca são pessoas que fazem parte da minha construção enquanto artista. Eu tive a possibilidade de ter um contato mais próximo com Chico César, já trabalhei com ele e o Zeca é um cara, pra mim, sei lá… "Vô Imbolá" (1999) é um disco de Zeca que me inspirou muito, minha vida inteira eu ouvi esse disco e o Elisio também… Me deu vontade de buscar pessoas que pra mim eram especiais nesse sentido. Então, eu escrevi para Zeca e Chico e eles toparam compor comigo e foi maravilhoso! Zeca entrou no disco cantando, porque foi inevitável… A voz dele tem uma presença tão particular, né, e quando recebi a guia dele gravado, eu percebi. "Nossa, ele precisa cantar!". Então, foram pessoas que vieram a partir de desejos meus, do Marcus e do Elísio também; mas também porque fazem parte da minha vivência contemporânea. Com esses compositores da música nordestina, digamos assim, brasileira e mundial - essas fronteiras que a gente não deseja.

A música de Tom Zé [Aburguesar] foi o Marcus que trouxe. Marcus trabalhou em um disco de Tom Zé [Vira Lata Na Via Láctea, 2014] e essa música estava em um rolo de músicas de Tom de 1972. Ele resolveu gravar a música com uma nova letra, e um dia a gente tava conversando e Marcus disse: "Ju, lembrei de uma parada aqui que é uma canção de Tom Zé de 72 que ele gravou com outra letra, mas acho que você deveria gravar no original". A gente conversou com Tom Zé, ele liberou e a gente gravou. Dentro dessa ficção toda, dessa minha vontade de desfazer fronteiras, de não ter que ser um disco do Nordeste para o Nordeste, com apenas nordestinos, não tinha como não ter cariocas e pessoas de outros lugares. A minha trajetória como cantora é muito no Rio de Janeiro e a Letrux é uma artista que eu adoro, me inspira muito a performance, o lugar que ela ocupa, como ela se coloca, como se comunica, a voz, tudo que ela traz… Ela tem uma personalidade muito interessante e eu achei que para fazer uma música tão interpretada, uma música de Tom Zé que realmente parece que precisa de atrizes, eu achei que a Letrux tem também esse lado atriz, achei que ela era ideal e não me arrependo. Foi um encontro muito especial para o disco.


Quais são os planos para este ano e o futuro pós-vacina? Podemos esperar muitos shows?

Esse ano a gente segue produzindo virtualmente, até o momento em que a gente tiver segurança o suficiente para voltar aos encontros presenciais, né. Vamo entender como vai ser tudo. É realmente difícil não ter previsão, a necessidade de palco, a saudade do calor… Eu confesso que tô igual bombinha aqui, prestes a explodir de desejo de cantar, muita saudade do palco! Eu sou uma artista do palco! Todo mundo que me conhece sabe que no palco eu sou muito diferente - sou muito mais do que sou no dia a dia. Sinto muita falta da Juliana do palco, ela me equilibra muito, então tá muito difícil. Mas eu tô pronta! Acho que quando puder voltar, vai ter muitos shows porque a sede de cantar é enorme. Viajar com esse show, levar esse show para todos os lugares… Peço muito para que as pessoas ouçam e façam o disco reverberar até lá.


A narrativa de Juliana Linhares termina em "Frivião". Depois de 11 músicas, um álbum composto por 41 minutos e 12 segundos, "Nordeste Ficção" se encerra. Fecham-se as cortinas. No entanto, as emoções e o impacto do álbum ficam. E continuam com o ouvinte por muito tempo. A história de Juliana continua ecoando - o pedido dela se realizou: "Nordeste Ficção" continua repercutindo dentro e fora da gente.


Nordeste Ficção

Direção artística: Marcus Preto

Produção musical: Elisio Freitas

Mixagem: Fernando Rischbieter

Masterização: Bruno Giorgi

Conceito e projeto gráfico capa: Ara Teles

Fotografia capa: Clarice Lissovsky

Beleza: Cora Marinho

Maquiagem: Milena Abdala

Styling: Nathalia Gastim

Apoio: Victor Hugo Mattos e Helena Pontes

Produção: Juliana Linhares, João Severo e Janaína Santos

Distribuidora digital: Believe Music


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