Formado por músculos, células, órgãos e ossos, o corpo humano é muito mais do que um esqueleto. Com ele, é possível manifestar e transformar a arte, fazendo com que os sentimentos atravessem a pele e alcance o coração. Dessa maneira, Venusto coloca a disposição o seu próprio corpo para misturar performance e música, alterando a realidade através do diálogo, fazendo com que o ouvinte seja tocado e visto em suas canções.
Misturando diversos gêneros musicais, seu primeiro EP, "Atravessa Pele", aborda os diferentes tipos de relações, além de celebrar a música negra brasileira. "Na sonoridade passeio em que escutava na minha casa de infância e que mais gosto: som brazuca que passa pelo samba, guitarrada e bossa. Nessa combinação chego num retro futurismo da nova mpb, saudando meus ídolos e mirando em um futuro distópico - numa mistura de sons brasileiros e beats", conta.
Impactado pela pandemia, Venusto, que também é Tiago Nery Borges, trata o vínculo que surge na internet entre as pessoas, mas com a ausência dos corpos. A saudade do toque e a paixão carnal também são retratados no disco, mostrando as diversas facetas do ser humano. O amor do artista pela música fica explícito nas canções, uma vez que sua pele foi aberta para se mostrar. "Hoje, vejo que todas as canções do EP podem ser interpretadas como hinos de devoção ao meu relacionamento com a música", explica.
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Você veio do teatro e do cinema. Como foi o processo de transição/necessidade para a música?
A música sempre esteve próxima, fui levando com leveza até o momento em que eu estava transbordando e precisando compartilhar. Comecei estudando música, foi meu primeiro contato com os estudos em artes, eu tinha uns sete anos. O teatro entrou em minha vida na adolescência. E acabou que, pela minha formação em atuação, adentrei no cinema como ator. Fiquei apaixonado pela sétima arte, e comecei a estudar outros segmentos do cinema até chegar na direção.
Mas paralelamente ao estudo de teatro, fiz aulas de canto em grupo. E ressurgiu em mim um sentimento bom que eu tinha quando criança, ao ter contato com a música. Um daqueles formigamentos com a respiração que hiperventila, sabe? Comecei a compor, e sabia que em algum momento iria lançar algo na música, mas eu estava tão excitado com o processo que fui levando como minha válvula de escape. No teatro e no cinema eu já trabalhava profissionalmente, e eu me cobro muito. A música era a possibilidade de experimentar livremente sem me preocupar com mercado, público, bilheteria… Nessa busca cheguei a gravar dois EPs tentando me encontrar artisticamente na música. Meu primeiro EP (não lançado) é completamente experimental, passa pelo jazz e rock. Meu segundo EP (não lançado) já vem de encontro com minha pesquisa atual, sons brasileiros, regionais com beats. Só que não achei o resultado maduro o suficiente. Até chegar em "Atravessa Pele", meu primeiro EP de estreia. Onde, após trocar o couro, me vejo inteiro.
Você altera, entre as canções do EP, de pele para abordar temas como relacionamento e o impacto do isolamento social. Como foi passear por esses assuntos e cantá-los?
A música me salvou. Quando, durante o caos que estávamos imersos, tentando entender o sentido de tudo que estávamos vivendo, e o que era realmente essencial. Escutar música, estudar, compor, foi o que me manteve de pé. E ali, fui rascunhando o que me atravessava, o desejo, a saudade do toque, do cheiro. Foi uma forma de desabafar. De um período amargo para todos, cuidei para transmitir as canções em acalento, ao cantar sobre a saudade.
"Gatinha33" aborda as relações que surgem na internet. Inclusive, nos dias atuais, é comum usar aplicativos para conhecer outras pessoas, por isso, te pergunto: Como você vê essa "frieza"? Aliás, é possível encontrar o amor pelas redes sociais?
Em "Gatinha33" falo sobre avatares, a forma como nos identificamos e expomos nossas características para relacionamentos amorosos através da tecnologia. Compus ela durante a pandemia, quando uma amiga se mudou para minha casa, e todos os dias me contava suas aventuras no bate-papo do Tinder.
Hoje, os aplicativos para relacionamento se tornaram uma forma comum para as pessoas se conhecerem, e se relacionarem, algo que naturalmente ocorre com o desdobramento da tecnologia. Se você está lendo isso agora, provavelmente você tem um perfil social nas redes, onde apresenta recortes de sua vida. Só que, enquanto no mundo offline nós temos o acaso, no online nós temos o algoritmo, que entendendo nossos padrões de comportamento, nos enclausura em tribos onde lemos e vemos aquilo que nos trás conforto. E na necessidade de pertencer a essas tribos, mesmo sendo digitais, uma comunidade em torno de um app, nos distanciamos de nossa escuta, e digitamos agindo como se nós fossemos robôs, tentando encaixar quem somos dentro de caracteres. O nome em nossos avatares sociais não tem memória, pais ou avós. Nicknames que descrevem uma característica ou seu desejo. Dessas elucubrações nasce "Gatinha33", onde canto: "Só pra curtição, Djavan no violão, não tem tempo ruim não / Só pra conversar, amigos, contato, agora". O que você tem de real informação sobre essa persona que descrevo? E não acho que a forma como nos relacionamos hoje esteja errada. Nossos avós faziam suas juras por cartas, nossos pais por telefone. Nós usamos apps. Até onde vi e vivi, histórias de amor, fraternas, românticas advindas de apps são possíveis quando a rede social é um meio, e não o fim. Uma porta para o primeiro contato seguida de um encontro com o acaso. A "Gatinha33" da música se apegou, casou, comprou apartamento e adotou uma cadelinha.
"Tagarelá" relata a saudade durante o isolamento, enquanto "Pele" explora a relação carnal. Como foi abordar duas visões diferentes? Após o tempo de confinamento, você acha que estamos misturando a saudade com o desejo de completar o vazio que sentimos durante aqueles anos?
Ninguém saiu ileso do isolamento, nos mudamos, a sociedade mudou. Acho que ainda estamos perto do olho do furacão para entender a dimensão do que passamos. E durante o confinamento eu sentia um vazio febril, medo de perder quem amo, medo de estar à deriva sem saber quanto tempo íamos permanecer naquela situação.
"Tagarelá" veio de fritações durante o isolamento. Quando, durante o caos que estávamos imersos, tentando entender o que estávamos vivendo, e o que era realmente essencial. Passamos por festas de família, shows, em vídeos chamadas. Ali, bateu a saudade do toque, do cheiro. A solitude tinha espaço, mas abraçar, sentir o cheiro fazia falta. Em "Tagarelá" canto o desejo do encontro. Já na faixa "Pele" conto uma história íntima com suingue onde escancaro o desejo da carne. Numa biografia escrita sobre corpos. Acredito que advindo do isolamento, ficamos com uma demanda reprimida de afetos.
Em sua arte, você propõe a transformação da realidade através do diálogo. Quais sentimentos e ideias você espera que o ouvinte retire de suas canções?
Era uma era onde vivemos relacionamentos atravessados por equipamentos eletrônicos, onde somos em parte do tempo seres virtuais frente a tela, em relações íntimas sem pele na pele, narro no EP o desejo de encontros de almas que perpassam a tela, a aparência física e os estereótipos. Sabendo que quem escutar o EP, vai estar comigo compondo, completando as letras das músicas com a persona em sua vida que se encaixa nas canções, busco nas letras ser o mais íntimo possível, serpenteando entre estilos musicais, envolvendo, enquanto deflagro três histórias reais de nosso tempo.
Em Venusto, nós também temos acesso ao Tiago?
Para mim, às vezes é mais fácil desnudar o corpo do que aquilo que se sente. Através da música, do teatro e do cinema criei uma forma de escoar meus sentimentos em metáforas. Pela arte, vou mostrando um pouco da minha alma e sentimentos, que às vezes eu nem sei que existem, de tão enterrados que estão em mim. Fiz da comunicação o meu ofício, e me intriga a dificuldade que tenho de falar sobre minhas emoções de forma direta, sem máscaras ou cenas. Venusto é a lente de aumento sobre o recorte que o Tiago faz do mundo.
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